“Quatro anos quase, nos contrista, ilusos
De promessas, recados e esperanças,
E al tem no coração. Com novo engano,
Nos disse, ao predispor fina ampla teia:
— Amantes meus (...)
Vós não me insteis, o meu lavor perdendo,
Sem que do herói Laertes a mortalha
Toda seja tecida, para quando
No longo sono o sopitar o fado (...)
Esta desculpa ingênuos aceitamos.
Ela, um triênio, desmanchava à noite
À luz da lâmpada o lavor diurno;”
Odisseia de Homero – trecho sobre Penélope
É do mito grego registrado na Odisséia de Homero que Tatiana Blass empresta o nome Penélope à instalação desenvolvida para ocupar a Capela do Morumbi. Segundo o mito, após um ano de casado, Odisseu deixa Penélope e parte para a guerra de Tróia. Vinte anos depois, sem notícias, Penélope passa a ser assediada por novos pretendentes, e assume o compromisso de escolher um novo marido quando terminasse de tecer uma mortalha para o pai de Odisseu. Durante o dia, aos olhos de todos, tecia; durante a noite, solitária, desmanchava na tentativa de enganar o tempo e iludir seus pretendentes, aguardando a volta de seu amado.
Na instalação, um grande tear manual de pedal está posicionado no altar da Capela; de um lado, um longo tapete vermelho é tecido, do outro o tapete se desfaz. A simbologia do tapete vermelho não está particularmente ligada à religião, mas sim ao poder. A cor púrpura, muito valorizada na Antiguidade e Idade Média, é um vermelho escuro que tende ao roxo, obtida através de algumas espécies de moluscos. Eram necessárias grandes quantidades desses moluscos e grande mão de obra para realizar a extração da substância utilizada para o tingimento, o que tornava o tecido extremamente caro. Devido ao alto custo, o vermelho era tipicamente usado pela realeza e membros da Igreja, e com o tempo tornou-se símbolo do poder real e eclesiástico.
É esse símbolo de poder que nos recebe na porta da Capela. Seguimos o tapete até o tear, e vemos sua construção dissecada; há um movimento dúbio, não sabemos se a peça se desmancha ou se ela está sendo construída. Parado, o tear acaba por desvendar o construir dessa forma, um ato que normalmente não se faz visível. Tatiana nos dá alguns elementos para insinuar uma existência, um movimento, ou uma construção, e cabe a nós imaginarmos o restante. Se outros trabalhos da artista sugerem um parêntese entre as coisas a fim de explicitar uma ação, ou uma presença através da ausência, aqui o tear se configura como o que está entre parênteses, dando materialidade a um elemento oculto.
Do outro lado do tear, os fios escorrem desordenadamente, correm o chão ou sobem as paredes vencendo-as pelos buracos existentes na arquitetura – resultado da técnica construtiva da taipa-de-pilão – e ganham o jardim, se arrastando ao modo de um cipó-chumbo, planta parasita que serviu de referência para a obra. Por não ter clorofila, o cipó-chumbo não pode produzir seu alimento, precisando de uma planta hospedeira para se manter viva. Por cobrir a planta aos poucos, a sufoca; a única maneira de matar a praga é matando também o hospedeiro. Como nos trabalhos realizados em cera pela artista, assistimos um lento definhar. Do lado de fora o que vemos é o alastrar dessa grande mancha vermelha que, apesar de ter aparência leve, a exemplo da parasita, consome a paisagem horizontalmente, de certa maneira como nas pinturas e livros realizados pela artista, onde a paisagem é invadida por manchas de cor.
Em trabalhos anteriores já existe esse movimento dúbio de construir/desconstruir de Penélope. Cadeiras e mesas escorrem em manchas de cor, perdendo sua funcionalidade, ficando entre ser utensílio e ser só cor, objetos são divididos ao meio e apresentados seccionados ou com pequenos desníveis, animais são apresentados incompletos, a fim de nos intrigar; cachorro ou homem derretem quase até o fim, sempre em transformação, mas também, sempre no meio do caminho, entre a forma e a não forma. É isso que vemos em Penélope, apesar de insinuar um fazer, ou um desfazer, a obra está parada; sempre no mesmo ponto, é como se essa construção/desconstrução sugerida se desse às escondidas.
Na produção de Tatiana Blass, assim como no mito de Penélope, nós espectadores estamos constantemente sendo iludidos, afinal, para a artista, parte do papel da arte é criar estranheza, assombro, ilusões, um deslocamento da realidade que desafie a nossa percepção. Como em qualquer crença, religiosa ou não, cabe a nossa participação para que ela exista, precisamos nos deixar levar. Como diz a artista em outro trabalho, o engano é a sorte dos contentes.
sobre o autor
Douglas de Freitas é o curador da exposição “Penélope”, da artista Tatiana Blass, na Capela do Morumbi, de 25 de setembro de 2011 a 26 de fevereiro de 2012.