Diante de uma gravura de Samico, a primeira sensação é de encanto e estranhamento. Suas imagens, minuciosamente gravadas na madeira e impressas no papel, são registros de um mundo particular que ao mesmo tempo é íntimo e universal, e por isso também humano. Esse humanismo, refletido em símbolos e figuras, será mais claro ou menos distante para aqueles que o reconhecerem com o pensamento sensível, muito antes do mero arcabouço erudito. Sim, a sua erudição está lá, depositada em cada traço do desenho, escondida sob a tinta preta ou nas cores que se abrem como frases sublinhadas para clarear um sentido. A moldura que circunda essas cenas é uma janela para o mistério, e nesse mistério todas as paisagens são espelhos de sua invenção. Daí se conclui que o que há numa gravura de Samico é poesia – a poesia que só encontra expressão em seus personagens e construções, em seus enredos e cenários.
Se estou diante de uma gravura como A caça, de 2003, reconheço que o índio da cena também sou eu. A sua intenção, com o arco em punho buscando o cervo já alvejado, é um ato de sobrevivência e se confunde com a inocência diante do fato de ele também ser caça. Como no triângulo de uma cadeia alimentar, o cervo que encima o conjunto é apenas um vértice da corrente. Na cena – ou cenas –, enquanto o cervo e o índio parecem imóveis em seus gestos, uma águia surge em movimento, e é a única figura que transita entre os ambientes da narrativa. Jamais saberemos quem é verdadeiramente a presa e quem é o caçador. Nessa gravura que reúne todos os reinos da vida, em que o humano, o animal e o vegetal têm seus espaços glorificados, apenas as figuras do cervo e do índio recebem a luz absoluta da cor branca, vazia de qualquer traço, a sugerir que tal semelhança os iguala no trágico destino de todas as vítimas. A águia – consideremos que este pássaro seja uma águia, mas pode ser um gavião, um carcará, um condor, uma harpia –, soberana e heráldica, dirige-se para o interior da cena enquanto o índio e o cervo miram o infinito exterior, parecendo ser a única que tem o conhecimento e o controle de sua ação. Apenas ela tem o corpo decorado, e suas patas, cabeça, peito e asas são cuidadosamente trabalhados como numa homenagem hierárquica. O seu poder se evidencia, em última análise, na escala ampliada que a coloca em primeiro plano, permitindo uma nova interpretação para o título da gravura.
O mistério ou a multiplicidade de sentidos nas cenas criadas por Samico decorrem do que Ferreira Gullar chamou de “sonho, delírio e poesia”. Ainda assim, como observou Gullar, “queremos decifrá-las, ou melhor, de fato não o queremos, porque necessitamos de preservar-lhes o enigma, o encantamento”. É este enigma que sobrevive em A caça e em inúmeros outros títulos em que Samico opera a fantasia com o seu arsenal de enredos e personagens. A fonte dessa fantasia, sabe-se há tempos, já foi a literatura de cordel que, num segundo estágio de desenvolvimento do artista, serviu-lhe como ponte para um mundo onírico e particular a partir da década de 1980. Naquele momento, entravam em cena suas leituras de mitologias de outras culturas, especialmente o estudo e a recriação de mitos encontrados nas narrativas da trilogia Memória do fogo, do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Um dos melhores exemplos dessa recriação é a gravura A conquista do fogo e do grão, terminada em 2010, que tem detalhes coloridos de extrema riqueza. Mais ainda, esta gravura apresenta uma característica pouco comum na obra de Samico: a ausência da figura humana em toda a cena. Sob uma grande ave que carrega uma chama ou flor de fogo, elementos como a chuva, plantações de milho e inundações circundam uma lagartixa (ou lagarto) que aponta para o chão. Todos são símbolos e personagens de uma lenda intitulada O poder, lida por Samico na trilogia de Eduardo Galeano. Nessa insólita narrativa, um personagem conhecido como “o Mesquinho” possui o grão e o fogo, e, como único provedor de alimentos para o seu povo, fornece o grão já queimado para que ninguém possa plantá-lo. Um dia, uma lagartixa consegue roubar-lhe um grão cru. “O Mesquinho agarrou-a e rasgou-lhe a boca e os dedos das mãos e dos pés; mas ela tinha sabido esconder o grãozinho atrás do último dente. Depois, a lagartixa cuspiu o grão cru na terra de todos. Os rasgões deixaram a lagartixa com essa boca enorme e esses dedos compridíssimos.” A lenda também conta que, um dia, durante uma briga com o Mesquinho, um papagaio roubou-lhe a fonte do fogo, “um tição aceso”, e fugiu para o bosque escondendo a chama no oco de uma árvore. (Qualquer semelhança com o mitológico Prometeu apenas reforça a tese de Samico de que uma mitologia universal se recria em diversas civilizações.) Na tentativa de apagar a chama e punir todos, o maldoso personagem “bateu seu tambor e desencadeou um dilúvio”. A história conta, ainda, que, devido ao esforço para salvar o fogo, o bico do papagaio ficou “curto e curvo”, e que nele ainda se pode ver “a marca branca da queimadura”. Na gravura A conquista do fogo e do grão, Samico reproduz quase todos os elementos e personagens envolvidos na parábola: os dois bichos (o papagaio hierático tem a plumagem verde e amarela, característica dessa ave), duas espigas de milho, um milharal, a tempestade e o incêndio ordenados pelo homem. Curiosamente, o protagonista de toda a história, o Mesquinho, não aparece, e sua ausência indica a expressa condenação a que foi submetido por parte de quem recria graficamente a lenda. A gravura, portanto, é uma ode aos seus heróis.
O processo de criação de Samico é meticuloso e demorado, e ele já levou até um ano para a finalização de uma única gravura. Recentemente, ele disse, numa rara palestra em que discorreu longamente sobre o seu trabalho, que poderia fazer três, quatro, ou quantas gravuras quisesse em um ano. Mas isso, ficou claro, era apenas prova do seu bom humor. Na verdade, antes do desenho definitivo na madeira, são feitos inúmeros estudos preparatórios, variações de detalhes, experimentações em diversos tamanhos, inversões, supressões, tudo geralmente começando em pequenos papéis até chegar à obra que será impressa. Esse trabalho, em geral, leva meses. Em cada versão há mudanças às vezes radicais, sempre buscando um equilíbrio obsessivo. O tempo, em seu processo, tem uma razão peculiar. Quando uma vez perguntei a Samico por que o tempo para a realização de uma gravura era incerto e, dos primeiros estudos até a impressão, poderia levar até um ano, ele respondeu: “Eu não sei trabalhar com prazos, sob pressão. Tenho medo de enlouquecer”. Então percebi que ele não se referia ao tempo como duração, mas como razão de sua liberdade.
A impressão de cada gravura é feita de forma inteiramente manual, apenas por ele, e o número de exemplares para as gravuras realizadas nos últimos anos pode chegar a 120. “É preciso saber que há artistas que fazem apenas o desenho e depois mandam alguém gravar. Eu desenho, gravo e imprimo.” O longo tempo demandado para esse trabalho também se deve ao fato de que, além do preto predominante em sua obra, ainda são inseridos detalhes em cores. Nesses casos, o tempo gasto só para imprimir um traço de cor não é menor do que duas horas por exemplar. Uso aqui a palavra “exemplar”, e não “cópia”, porque, como explica Samico, assim como um livro, cada gravura impressa é em si mesma um original, e se um mínimo detalhe de impressão a difere das demais – desde que não a prejudique –, antes de simplesmente distingui-la, enriquece-a, tornando único este exemplar, como deve ser todo livro.
Um dos segredos para a qualidade de impressão e durabilidade de uma gravura é o papel. Samico reconhece que houve época em que sentia mais facilidade de encontrar papéis específicos para impressão, e lembra-se de um certo “papel de trapo”, feito a partir de restos de tecido de linho. O tecido, uma vez transformado em pasta, resulta num material de qualidade incomum. Ele diz que o que se costumou chamar “papel de arroz” é apenas aquele feito da fibra de uma planta chinesa (papel-arroz), da mesma forma que se faz o de bambu, de amoreira, de bananeira, e outros a partir de fibras vegetais. Quanto à origem, o que ele usa vem do Japão. De produção quase artesanal, nesse a tinta adere melhor, a impressão é macia, algo que dificilmente se alcança no melhor papel industrializado, seja produzido no Brasil ou em qualquer outro país. Mas não é só isso que lhe proporciona um traço firme, seco, sem falhas. Um traço fino, sem acidentes na impressão, se deve acima de tudo à quantidade de óleo existente na tinta. Uma tinta demasiado oleosa cria um halo amarelo no limite da linha impressa. Ressalve-se que a tinta usada em impressão não é a mesma tinta a óleo da pintura de telas. Esta, se aplicada à impressão, desliza demais, não adere de forma correta.
Ainda antes do papel, a matéria primordial para a execução de uma xilogravura é a madeira. Samico sabe como poucos as especificidades de inúmeras espécies e, na maioria dos casos, conhece-as pelo tato, pelo cheiro, pela cor. Quando ainda não havia definido o tipo específico para o seu trabalho, usou de tudo, até pedaços de caixas de frutas. Foi a sugestão de Lívio Abramo, um dos mestres da gravura brasileira, com quem Samico estudou, em 1958, em São Paulo. Em suas aulas, por questões financeiras, Lívio só usava o linóleo, mas não era contra quem quisesse experimentar a madeira e até incentivava o aluno pernambucano: “Ande pelos becos que cruzam a avenida São João e você vai encontrar caixotes de maçãs jogados fora”. Foi então que Samico começou a ter o material para suas primeiras xilos feitas na capital paulista. Logo considerou aquela fibra demasiadamente macia, o que tornava difícil o trabalho. Ainda assim conseguiu realizar gravuras com traços inacreditáveis para essas condições. Não se pode afirmar que haja uma madeira ideal para a xilogravura. Samico diz que “a melhor é a de cada um”, no entanto, o ideal seria sempre dispor do pequiá-marfim, uma espécie dura, que aguenta o corte mais delicado sem se quebrar. Essa era a espécie mais usada por Oswaldo Goeldi, outro gigante da gravura no Brasil, com quem Samico também estudou, em sua estadia no Rio de Janeiro, logo após deixar o curso de Lívio Abramo.
Na serraria que mantém em sua casa – um belo sobrado do século XVII – em Olinda, Samico guarda amostras de diferentes tipos de madeira. Por todos os lados o cheiro é forte, peculiar. Um pedaço encontrado sobre a mesa é cheirado como se cheira uma flor. “Mas tem aquela que faz espirrar, e quando a gente passa na máquina sente amargar a boca, arder a garganta”, ele diz. Depois de apontar várias amostras, delicia-se com suas cores e texturas. “Eu tenho aqui muitos tipos de madeira. Por exemplo, essa aqui é uma jaqueira, que não serve para minha gravura, pois a fibra é muito complicada. Mas eu guardo e posso usar para outra coisa. Os cupins têm ódio de mim porque eu vivo competindo com eles. Aquilo que nas outras serrarias é jogado fora, eu guardo.”
Entretanto, no processo de execução de suas gravuras, o quesito mais peculiar é o de suas ferramentas. Samico é também um criador de goivas e mesas especiais, e poderíamos chamá-lo de “desenhista industrial” da gravura moderna. Ele desenvolveu, ao longo dos anos, instrumentos próprios de trabalho, partindo de necessidades observadas no exercício e no aprimoramento de suas técnicas. Com isso, tornou-se um criador de seu próprio “maquinário”, à maneira dos artistas renascentistas ou mais antigos ainda. Sabe-se que, no século XIV, a partir dos blocos de madeira usados para impressão de tecidos, surgiram as primeiras impressões em papel, tendo início a xilogravura. Nesse processo de descobertas e aprimoramentos, a partir do século XV aparecem as primeiras oficinas especializadas, em que foram criadas ferramentas próprias para impressão. Samico recupera, cinco séculos depois, uma tradição de inventores.
Entre todas as formas de gravura, talvez a xilo seja a que reúne mais peculiaridades, não pelas dificuldades com relação a outras técnicas, como a água-forte, a ponta-seca e o buril, mas pelas especificidades de sua principal matéria-prima: a madeira. Isto posto, assim como na história da gravura ocidental Lucas Cranach, Hans Holbein, Rembrandt, Piranesi e Goya marcaram nossa alta cultura – sendo os dois primeiros grandes xilogravuristas –, nomes como Picasso e Morandi garantiram a excelência da impressão moderna. No Brasil, Oswaldo Goeldi, Lívio Abramo, Rubem Grillo, Marcello Grassmann e Gilvan Samico são artistas canônicos. Samico, na xilogravura, e Grassmann, no metal, são hoje os maiores gravadores da arte brasileira.
Observar uma gravura de Samico permitindo ao olhar a convivência com seus personagens faz o meu dia ser melhor. Um minuto de observação sobre suas criações reanima a minha capacidade de sentir, de ver além dos muros da realidade, e posso reinventar o que seria apenas um homem diante desses muros porque ali há uma janela para a fantasia. No momento em que deparo com esse universo de bichos e figuras que percorrem o mundo fantástico de Samico, inauguro o diálogo em que o outro é sua poesia, e cada uma de suas gravuras é um sonho que alcanço atrás do vidro.
nota
NE
O presente artigo é o texto do catálogo da exposição “Samico”, mostra individual com gravuras de Gilvan Samico, Galeria Estação, de 26 de junho a 31 de agosto de 2012.
sobre o autor
Weydson Barros Leal (Recife, 1963) é poeta e autor de diversos livros: Água e pedra (separata da Revista Estudos Universitários, UFPE), O aedo (Prêmio Mauro Mota de Poesia, 1988; Prêmio Othon Bezerra de Melo, 1989), O ópio e o sal (Prêmio Mauro Mota, 1990; 1ª Menção Honrosa do Prêmio Jorge de Lima, 1991), Os círculos imprecisos (Massao Ohno, 1994),e A música da luz (Bagaço, 1997) e Os ritmos do fogo (Topbooks, 1999).
Em 1997 representou o Brasil no VII Festival Internacional de Poesia em Medellín, na Colômbia, ao lado de 60 poetas de 38 países. É autor da biografia de Francisco Brennand, inserida no livro Brennand (texto de Olívio Tavares de Araújo, fotos de Rômulo Fialdini; Ministério da Cultura do Brasil/Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1997). Tem inúmeros poemas e ensaios sobre literatura e artes plásticas publicados em jornais, revistas e catálogos de exposições no Brasil.