O que é isso?
Versos sacânicos – com uma pontinha de sacralidade – com idéias sobre a cidade contemporânea. Sem contra-indicações, a não ser para os fundamentalistas de qualquer matiz.
Contraditório e ambíguo, como a cidade contemporânea, um Cordel desencantado – mas com uma pontinha de otimismo que me move.
A saga ambígua da cidade sagaz
Se Drummond tem centenário
E Patativa voou
Nesse presente cenário
Agora sou eu que vou
Em arremedos de versos
Traçar minha Narrativa
Os fatos acontecidos
Olhando de baixo e de cima
Os caminhos percorridos
Nessa nossa Disciplina
Começo com o registro
Que houve espaço à vontade
Com projeções, qual cinema
Ao comentar a cidade
Três Ulisses de leitura!
E a discussão foi plena
Principalmente com o tema
Cidade contemporânea:
De Medelín a Sobral
Sertaneja ou litorânea
Foi assunto garantido
Ao longo de toda semana
Desde a primeira paulada
Que o sólido se desmanchou
Na modernidade nua
Que Fausto se arrepiou (1)
Sendo tamanha a empreitada
Deixou a trilha marcada
Entre o fazer e o nada
Construção, terra arrasada
Botou fogo e se mandou...
Dédalo remete a Teseu (2)
Trazido para o presente
No contexto da cidade
Revela discretamente
A nova modernidade:
Apogeu e decadência
Deslumbramento e tristeza
Um altar para a ciência
É lucidez e demência
Ambivalência e beleza
E o fio que nos conduz
Nesse (des)desvelamento
(Da armadilha sagaz
Do moderno labirinto)
Se oferece uma luz
– “Onde está meu Ray-Ban?”
Traz também ofuscamento...
Na condição pós-moderna (3)
O tempo acelerado
O loop da grande roda
A força cruel do mercado
A imagem prepondera
Superando a realidade
Liquefazendo a cultura
Cidade atordoada
Que procura a saída
Aonde seria a entrada
A grande cidade global (4)
Redesenha seu papel
Conecta-se em rede, agora!
Sede multinacional
Rompendo o mundo afora
Informação digital
Transformando em moeda
A formação cultural
Se aproximando do longe
E longe do seu quintal
Cidade que vira evento (5)
Arquitetura espetáculo
A memória vira trapo
Para se esfregar o chão
(iluminado, é verdade
de purpurina e neon)
Fica a forte impressão
Que a historicidade
Não acompanha a cidade
Sua constituição
Identidade é conceito (6)
De corrente discussão
Alguém diz não ter jeito
Tanta apropriação
O mundo que se transforma
Transforma pra todo lado
Não há como se esconder
Refugiar no passado
Precisamos de outra forma
De uma nova Tradução
(E por falar em Memória (7)
Eu já ia me esquecendo...
Do autor daquela história
– O nome dele eu não lembro...
Que explora bem a fundo
O sentido desse mundo
Da lembrança, do passado?
Halbachs – é verdade!
É um nome complicado
Difícil de ser lembrado
Depois de uma certa idade)...
O Patrimônio, coitado (8)
Tá em toda discussão
Simulacro iluminado?
Suporte da duração?
Quando se vê no espelho
É crise de identidade:
– “Será que fico vermelho
ou me entrego ao cafetão”?
O lugar identitário
Histórico e relacional
Trava com o não-lugar (9)
Um tremendo quebra pau
Em permanente tensão
O lugar ‘inda resiste
Enquanto em seu desvão
Cavando com insistência
O não-lugar lhe exaure
Ampliando sua instância
‘Não quero luxo nem lixo’
Dizia a roqueira senhora
Lá em outro carnaval...
Cidade é genérica agora? (10)
Espaço moderno é igual?
Do Espaço lixo não sobra
Alguma vitalidade
Pra gente gozar no final?
A cidade condomínio (11)
Com seus urbanos enclaves
Negando a convivência
Aos desprovidos de chaves
Atravessar as paredes
Ou o espelho de Narciso (12)
Romper limites dos muros
Faz sentido? É preciso?
Ou é uma grande ilusão
Pensar em outro caminho
O muro é o desenho (13)
Dessa civilização?
Tudo isso faz pensar
No papel da Academia
Na profissão de Arquiteto
Que trabalha dia-a-dia
Em nossa reflexão
Nossa criatividade
Será que para a cidade
Que já foi democracia (14)
Só resta agora mesmo
Ser a mais pura ironia?
notas
NE
Cordel desenvolvido por ocasião da Disciplina Cidades Contemporâneas no Curso de Mestrado do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília, no segundo semestre de 2011, com as professoras Elane Peixoto Ribeiro e Ana Elisabete Medeiros.
1
BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo, Companhia de Bolso, 2007.
2
BALANDIER, George. O Dédalo: para finalizar o século XX. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999.
3
HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo, Loyola, 1992.
4
SEVCENCO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa. São Paulo, Companhia de Letras, 2001.
5
SASSEN, Saskia. As cidades na economia mundial. São Paulo, Nobel, 1998.
6
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 3ª edição. Rio de Janeiro, DP&A, 1999.
7
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. A era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo, Paz e Terra, 1999.
8
HALBACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Centauro, 2006.
9
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo, Estação Liberdade/Unesp, 2001.
10. AUGÉ, Marc. Não lugares: uma introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, Papirus 1994.
11. KOOLHAAS, Rem. Três textos sobre a cidade. Barcelona, Gustavo Gili, SL, 2010.
12
HALBACHS, Maurice. Op. cit.
13
CALDEIRA, Teresa. Cidade de muros. São Paulo, Edusp, 2000.
14
LE GOFF. Jacques. Por amor às cidades. São Paulo, Edunesp ,1998.
sobre o autor
Jayme Wesley de Lima é Arquiteto e Urbanista (UnB), especialista em Patrimônio Cultural Integrado Urbano da América Latina (UFPE-CECI) e mestrando em Arquitetura e Urbanismo na FAU UnB.