Por decisão da família do fotógrafo Haruo Ohara (1909-1999), seu acervo foi doado ao Instituto Moreira Salles em janeiro de 2008 e passou então a ser tratado e preservado na Reserva Técnica Fotográfica do Instituto Moreira Sales – IMS no Rio de Janeiro, principal instalação dedicada à conservação da memória fotográfica no Brasil.
Este importante acervo, de um dos grandes nomes da fotografia brasileira da segunda metade do século 20, é composto por cerca de oito mil negativos em preto-e-branco, dez mil negativos coloridos, dezenas de álbuns e centenas de fotografias de época, além de equipamentos fotográficos, objetos, documentos pessoais, diários e livros. A reunião desse conjunto permite um estudo aprofundado da obra do fotógrafo e de sua vida como imigrante e pequeno agricultor na cidade de Londrina, no norte do estado do Paraná.
Imigrante, lavrador e fotógrafo, Haruo Ohara nasceu no Japão em 1909. Imigrou aos 17 anos para o Brasil com os pais e irmãos, cultivou a terra ao longo de boa parte de sua vida adulta com dedicação e arte – e simultaneamente fotografou sua vida e de seus familiares.
Sua obra, alinhada com a fotografia moderna e humanista de meados do século 20, contribui para mostrar que alguns dos antagonismos atávicos da cultura brasileira, como aquele que contrapõe o campo e a cidade como símbolos do arcaico e do moderno, herança de nosso período colonial extrativista e escravocrata, não resiste ao surgimento de uma nova personagem histórica na passagem do século 19 para o 20: o imigrante europeu ou asiático, que renova culturalmente e economicamente o país a partir do campo e que, no caso específico de Haruo Ohara, encarna tanto o homem da terra quanto o homem da cultura. Ao lado do trabalho diário na lavoura, Haruo cultivou a delicadeza dos infindáveis registros fotográficos possíveis da luz, delineando formas abstratas a partir de volumes e texturas dos objetos e da natureza presentes em seu ambiente e entorno. Produziu também marcantes imagens documentais e humanistas de sua família, de sua região e do mundo do trabalho associado à abertura da nova fronteira agrícola no norte do Paraná pelos imigrantes japoneses e de outras nacionalidades que para lá acorreram.
A fotografia em preto-e-branco, como técnica e forma de expressão artística, é uma linguagem que exige de quem a pratica o domínio preciso da luz no momento do registro da cena e grande domínio técnico e sensibilidade nos trabalhos de laboratório de revelação e ampliação final da imagem.
Fotógrafos que, em meados do século 20, desenvolveram-se nessa linguagem construíram um universo marcante de referências culturais e estéticas, influenciando nosso olhar contemporâneo sobre o presente e o passado recente. No Brasil, nomes como Marcel Gautherot, José Medeiros, Thomaz Farkas e Hans Gunter Flieg; e no exterior, Minor White, Edward Weston, Walker Evans e Ansel Adams, entre outros, formam uma linhagem que deixou sua marca autoral, estabelecida pessoalmente ou sob sua supervisão direta, nos dois momentos principais do processo fotográfico preto-e-branco: o da tomada da fotografia e o de posterior tradução dessa imagem capturada na câmera em imagem sobre papel que represente em preto-e-branco e tons de cinza o momento, a luz e as formas visualizadas originalmente.
Se a maior parte dos nomes citados é de fotógrafos que, ao longo de suas carreiras, atuaram nos principais centros urbanos no Brasil e no exterior, em meio a referências culturais e estéticas suas contemporâneas, o trabalho de Haruo, ainda que mais isolado por ter se realizado na nova fronteira agrícola do sul do Brasil, é realizado também dentro de um quadro de referências fotográficas e artísticas – associadas a sua participação ativa nos fotocineclubes da região de Londrina e no Foto Cine Clube Bandeirante de São Paulo, local de atuação de outros importantes nomes da fotografia brasileira como German Lorca, Farkas, Geraldo de Barros e Chico Albuquerque.
Da mesma maneira que os frutos da terra, as fotografias em preto-e-branco produzidas por Haruo entre os anos 1940 e 1970 e reunidas nesta mostra também exigiram seu próprio tempo de processamento e maturação. A emoção do fotógrafo em ver sua intuição e pré-visualização de uma determinada cena lentamente materializando-se no papel fotográfico processado na penumbra do laboratório, certamente foi semelhante à emoção do lavrador Haruo, que, na luz atenuada do amanhecer ou entardecer, contemplava o esforço de seu trabalho desabrochando em flor e fruto em seus campos cultivados.
Tanto é assim que Haruo sempre transcreveu em seus diários, álbuns fotográficos e cartas os seguintes dizeres: “Hoje você vê a flor. Agradeça a semente de ontem.”
Não apenas a urbanização crescente do país como também a mudança da base tecnológica da fotografia em direção à fotografa digital tornam tais processos pouco compreensíveis às novas gerações. Dentro de um quadro de intensa urbanização e industrialização em escala mundial, como o de hoje, a crescente velocidade e artificialidade dos ciclos econômicos e tecnológicos pretende-se impor como a “ordem natural” dos mercados e da vida moderna e contemporânea.
O trabalho de Haruo aponta, entretanto, para o fato de que, mesmo nesse momento de forte transformação e aceleração tecnológica, talvez apenas o tempo real de maturação das flores, frutos e filhos fortemente representados em sua obra seja também o tempo real e necessário para a criação artística. E essa insistente sinalização para o verdadeiro ciclo da vida e da terra, com seus ritmos ancestrais, é o seu principal legado.
nota
Texto curatorial da exposição Haruo Ohara – Fotografias, Instituto Moreira Salles, Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea, Rio de Janeiro, de 29 de junho a 8 de setembro de 2013, de terça a domingo, das 11h às 20h.
sobre o autor
Sergio Burgi é graduado em Ciências Sociais pela USP (1981) e possui diploma do Master of Fine Arts in Photography e Associate in Photographic Science pelo Rochester Institute of Technology de Nova York, ambos com trabalhos específicos na área de conservação fotográfica. Foi coordenador do Centro de Conservação e Preservação Fotográfica da Fundação Nacional de Arte, no Rio de Janeiro, entre 1984 e 1991. É membro do Grupo de Preservação Fotográfica do Comitê de Conservação do Conselho Internacional de Museus (ICOM) e, desde 1999, coordena a área de fotografia e a Reserva Técnica Fotográfica do Instituto Moreira Salles (IMS), principal instituição voltada para a guarda e preservação de acervos fotográficos no Brasil.