Dizem que uma das formas de dominar um evento, de compreendê-lo, é dando-lhe um nome. Haveria um nome que revelasse, de forma sintética, o fenômeno das manifestações de rua que animam os espaços públicos brasileiros neste junho de 2013?
Para a compreensão de um fenômeno não é suficiente acumular dados, nem sequer organizar esses dados em informação, de molde a compará-los com os de outros tempos ou de outros territórios. Abundantes dados e informações surgem na Internet, em nossos celulares, estão disponíveis em nosso bolso. Mas é a etapa seguinte, a da construção do conhecimento, que pode nos conduzir à compreensão do fenômeno. Para esta etapa, seguida ou não pela derradeira, a da sabedoria, é necessário o envolvimento pessoal: conceitos, visão de mundo, a memória histórica e até desejos utópicos. Abordarei a busca dessa compreensão, desse conhecimento...
O Brasil apresenta em sua história uma singularidade: as grandes mudanças de regime e de sistema político sempre foram produzidas de cima para baixo, sem maior participação da sociedade: a independência nacional foi uma declaração com que Dom Pedro I procurava responder a intrigas na corte portuguesa que o prejudicariam. Nada a ver com o que ocorreu no resto do continente: revoluções, guerras de libertação contra o poder colonizador, San Martin, Simon Bolívar, George Washington... A República surge em um dia 15 de novembro como consequência de um debate irritado do Marechal Deodoro com Dom Pedro II em que o tema central era o salário e os recursos do exército; e o Brasil amanheceu republicano... Em todos estes casos o estado precedeu a nação, embora, é claro, houvesse pessoas, grupos, e até pequenos partidos que trabalhavam pela independência assim como pela superação do regime monárquico.
O vulto e conteúdo das manifestações de junho constituem, portanto, um fato novo digno de nota: a nação nas ruas está claramente à frente das instituições que compõem o Estado, com condições de indicar, se não comandar, mudanças no exercício da política, no formato e desempenho da democracia no país. Abre-se a perspectiva de construção de uma nova política urbana, como bem expressa Luiz César Queiroz Ribeiro no eletrônico Boletim do Observatório das Metrópoles.
O descontentamento e a mobilização de sociedades está contudo ocorrendo em numerosos países, mesmo os que não apresentam a singularidade histórica apontada acima. Os mais de cem movimentos batizados de Occupy, levando nos Estados Unidos grupos por vezes consideráveis pela quantidade ou pela qualidade de seus membros, a protestar e a exigir nas ruas, em espaços públicos, impedem que a mídia esconda tais eventos. A crise econômica eclodida em 2008 fez ressurgir a ocupação de fábricas pelos seus operários, na véspera de seu fechamento pelos proprietários. O establishment, agora como em 1929, tem verdadeiro pavor desta reação ao desemprego pois denunciaria que “os patrões são desnecessários”.
Na Espanha, onde o desemprego, mormente entre quadros profissionais que não conseguem obter o seu primeiro emprego, originou o movimento dos indignados que percorrem ruas para protestar e ocupam espaços públicos.
Parece-me inegável a relação entre a crise financeiro-econômico-social eclodida em 2008 e a atual mobilização da sociedade contra as instituições. Desde a década de 1980 o setor financeiro da economia, reforçado pelos anos anteriores de grande crescimento da economia mundial, estava iniciando uma “vida independente”, um ciclo de reprodução que não passava necessariamente pela produção econômica. Como escreveu um economista americano: as finanças estão abandonando a economia ! O setor financeiro propiciou o enriquecimento especulativo, mediante construções artificiais capazes de captar vultosos recursos para neles apostar. A bolha cresceu a tal ponto, distanciou-se tanto das realidades econômicas locais e globais, que seu estouro poderia ocorrer pela inadimplência de qualquer pedaço dessas construções artificiais. A debacle iniciou-se pela inadimplência dos créditos imobiliários (hipotecas) nos Estados Unidos.
A descrição acima não constitui novidade, e o mundo continua em crise graças à dificuldade política de resolvê-la mediante as medidas radicais necessárias. E por quê? Porque o setor financeiro nessas décadas capturou o sistema político dos países democráticos: partidos e políticos estão mais dependentes do financiamento de empresas do que do apoio popular.
No caso do Brasil, o crescimento do custo de campanhas eleitorais, o uso nefasto de caixas dois (dos partidos mas também das empresas que os financiam), resultou em legislativos pouco identificados com o eleitorado, extremamente sensíveis às demandas corporativas e empresariais, assim como um crescente afastamento da moralidade pública, isto é, do caminho do interesse público. Menciono os legislativos e não os executivos, apenas por que neste momento os parlamentares, apavorados com a perspectiva de serem maciçamente escorraçados nas próximas eleições, escondem suas numerosas deficiências,e tomam decisões atropeladas, satisfeitos pelo fato do Governo Federal e sua Presidente, constituir a antena mais alta a receber o impacto das hostilidades.
O jogo no qual todos estamos envolvidos, revelado e dinamizado pela mobilização da sociedade e sua expressão nas ruas, objetiva a gestação de novas estruturas de representação e novos mecanismos de atuação e monitoramento social, novas formas de comunicação entre governos e sociedade, construindo um regime democrático que anule a influência corruptora do poder financeiro, que estabeleça novas normas de moralidade pública, que forneça identidade clara às agremiações partidárias. Mas isto deverá ocorrer paralelamente à criação de um regime econômico que transforme o atual capitalismo precário em um regime de produção voltado para o desenvolvimento, isto é, para o atendimento da sociedade.
O nome do jogo, portanto, é “reconstrução do regime democrático e de uma economia que corresponda aos anseios da maioria”, para o qual importa definir o que é interesse público e quais os atributos morais e éticos do seu desempenho, assim como novos formatos de comunicação e interação entre sociedade, partidos, poderes e governos, para que se supere a atual crise de identidade. A redução de 20 centavos no transporte público, assim como a imediata satisfação de outras demandas, passíveis de se integrarem em uma pauta inicial de superação de crise, constituem etapas significativas nesse inovador e bem vindo processo de reconstrução da democracia.
sobre o autor
Jorge Wilheim é arquiteto e urbanista.