A X Bienal de Arquitetura de São Paulo tinha a difícil tarefa de superar não apenas a crise que assolava as últimas edições de evento, mas uma certa crise disciplinar ainda presente, envolvendo o papel marginalizado da arquitetura nos debates públicos. A aposta um tanto arriscada se assentou na criação de uma agenda de questões que atentassem menos para os objetos arquitetônicos do que para as relações socioespaciais – muitas vezes obliteradas – ligadas à produção das cidades. Nos termos cunhados pelos organizadores, os “modos de fazer” e os “modos de usar”. A segunda aposta arriscada foi realizar a Bienal não numa única sede, mas dispô-la em diversos edifícios-chave conectados na rede de transporte público, de modo a estimular a experiência da cidade como parte integrante do evento.
Entre os “modos de fazer”, estiveram no Centro Cultural São Paulo imagens e vídeos da urbanização acelerada da região Norte e Nordeste, alavancada pelo chamado “espetáculo do crescimento” e pelo programa habitacional Minha Casa Minha Vida. Cidades que crescem, não sem contradições, no entroncamento de obras de infraestrutura como a transposição do Rio São Francisco, a Ferrovia Transnordestina, ou nas margens da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Cidades onde os tempos estão sobrepostos e a modernização se impõe a uma paisagem que lhe é estranha, isto é, estruturas arcaicas – do espaço e da sociedade – convivem com os avanços produtivos com ares de dualidade. Estas, ainda assim, são menos genéricas e fragmentadas do que Shenzen, Ordos e outras metrópoles do cenário chinês também retratadas ali, onde cidades surgem em meses e arranha-céus em dias – sobre as quais já se fala em hiperurbanização.
Ainda no que diz respeito aos “modos de fazer”, retratos multifacetados do Rio de Janeiro apresentam a preparação para Copa e para os Jogos Olímpicos, em suas relações com as políticas urbanas que adaptam em território nacional o modelo de empreendedorismo urbano pautado por marketing urbano, animação cultural e arquiteturas de grife; e que por esta via pretende lançar a capital fluminense no glorioso, ou nem tanto, hall das global cities.
Outra questão urbana não menos importante é trazida à pauta. Pelas imagens, vídeos e instalações o visitante refez o percurso histórico, do nascimento à crise iminente, do que se pode chamar de paradigma do automóvel ou rodoviarismo, expressões forjadas para dar conta de explicar o complexo conjunto de fenômenos – econômicos, políticos e culturais – que transformaram o automóvel em ícone da modernização, elemento central na gestão territorial e o objeto de desejo por excelência das classes emergentes nas sociedades de consumo dirigido. Vídeos como Futurama e New Town, ambos de meados do século XX, mostraram o início do percurso e, vistos hoje, deixam comicamente evidente de que modo seus conteúdos povoaram ideologicamente o imaginário social do período. Imagens de Los Angeles e de Las Vegas trouxeram o paroxismo do modelo de cidade espraiada, ligada por rodovias urbanas. Inteligentemente, em meio aos vídeos e imagens expostos havia também os próprios objetos em questão – alguns automóveis –, agora em estado de decomposição, dificultando a circulação. Entre as carcaças de obsolescência programada, a exposição se tornava para os visitantes uma paródia, ou então uma versão lado B dos Salões que reacendem anualmente, entre luzes, mulheres sensuais e high design, o fetichismo pelos carros com “conceito” e performances viris.
Ainda no CCSP, outro consenso foi rompido: o da possibilidade da segurança urbana mediante a profusão ad nauseam de grades e câmeras, quando do outro lado das grades se acentuam as forças de segregação e de redução da vida pública ao consumo estratificado por renda e nicho de mercado. A realidade, por vezes escamoteada deliberadamente mas ali lembrada com todas as letras, é que segurança só pode ser um bem vivido coletivamente; ou seja, na cidade ou todos estão seguros ou ninguém está.
No que diz respeito aos modos de usar e de transformar as cidades, a Bienal imprimiu um olhar corajoso e prospectivo, já no que concerne aos projetos arquitetônicos as iniciativas foram mais tímidas. No MASP estiveram Artigas, Paulo Mendes, no Centro Maria Antonia Brasília em construção, no CCSP utopias tecnológicas de Sergio Bernardes, o Copan enquanto condensador social. Um olhar retrospectivo, não encontrando no presente um momento capaz de superar os modos cânones de ser moderno. Todavia, como atesta a própria agenda da Bienal, isto não significa que a disciplina da arquitetura não mereça um lugar central na reorientação das práticas urbanas.
No domingo 23 de março aconteceu no “Minhocão” o último dos eventos da Bienal, trazendo à agenda a iniciativa de instalar na anomalia urbana pauliceia um parque que promova formas menos áridas e atomizadas de sociabilidade. O dia estava frio, mas as condições adversas para o uso da piscina não impediram que crianças e corajosos se dedicassem ao prazer de brincar na água sem calcular o frio depois da saída dela. A estes se somaram o pessoal do skate, belas moças dançando ao som de DJ’s atentos às novas miscigenações entre samba e rock, moços acompanhando o batuque nas pernas, meninas com bambolês, carrinhos de milho verde, de churrasco árabe, de refrigerantes. Levaram o local à vitalidade lúdica visada pela proposta da piscina no Minhocão.
Por estas e outras, a Bienal se tornou um quadro de referências com as quais se pode declarar passado o período que acreditou ter perdido os resquícios de urbanidade para os espaços de consumo. Perpassa na rede da Bienal uma série de indicativas certificando o contrário. A primeira delas é a de que as contradições dos processos sociais encontram nas cidades sua expressão mais evidente e concreta: os espaços públicos são lugares dos encontros, mas também do embate de perspectivas, do conflito de demandas, da busca por reconhecimento e legitimidade; enfim, espaços por excelência do pertencimento e do político. Segunda, a arquitetura pode sim retomar seu lugar social na vida pública, quando deixa de ser pensada como disciplina que visa tão somente a edificação de objetos que, na melhor das hipóteses, evitam ser máquinas anti-urbanas. A arquitetura pode garantir sua legitimidade quando pensada como força de intervenção nas práticas socioespaciais.
E é neste sentido que a X Bienal de São Paulo foi uma intervenção: nas representações da cidade, nos consensos públicos, nos modos de fazer e de usar o espaço compartilhado, tendo a arquitetura como ponto a partir do qual é possível reativar forças, reconstituir intensidades, repovoar o imaginário urbano e os horizontes de possibilidades.
sobre o autor
Paolo Colosso é arquiteto pela PUC-Campinas, com intercâmbio universitário na ENS d’Architecture de Grenoble. Bacharel em Filosofia pela Unicamp, atualmente faz mestrado em Estética Contemporânea no Departamento de Filosofia da USP.