Quando realizava minhas pesquisas sobre o modernismo, em meados dos anos 1960, quis conversar pessoalmente com René Thiollier. Mas quem me recebeu foi sua mulher, Sylvinha de Carvalho Thiollier, que faleceria pouco depois, no mesmo ano de seu marido, 1968, na Villa Fortunata, à avenida Paulista numero 1853, na confluência da Alameda Ministro Rocha Azevedo (onde hoje está “montado” um jardim municipal). Recebeu-me então para um depoimento pois René Thiollier, que como lembrou, também era seu primo em segundo grau, achava-se no dia acamado e não pude conhecê-lo pessoalmente.
Na ocasião ela falou-me de sua infância, na casa de seu avô, à rua Barão de Itapetininga, casa que se alongava até a rua 24 de maio. Conversamos sobre O contratador de diamantes levado à cena em 1919, tendo participado da representação René Thiollier alem de Dona Antonieta Prado Arinos de Mello Franco. Também relembrou a Ceia dos Cardeais, encenada em 1920, ocasião em que atuaram Aguiar de Andrade, Gofredo Silva Telles, Caio Prado Junior, alem de René Thiollier. Era um tempo em que a alta sociedade paulistana “curtia” o teatro e prova disso, lembro agora, seria a devoção de Alfredo Mesquita por essa área, e fundador da Escola de Arte Dramática, hoje integrada à USP.
Mas, recordando fatos da cidade, lembrou de seu tio-avô, Antonio Bento de Souza e Castro, abolicionista. Seu irmão Dr. Clementino Souza e Castro, intendente de São Paulo à época, (cargo que equivaleria hoje ao de prefeito) perguntou à irmã a propósito de uma rua que estava abrindo: “Que nome vou dar a essa rua?” E logo depois, acrescentou: “Ah, dou o nome dessa menina que não é ninguém”. Tratava-se de menina, órfã pela epidemia de febre amarela (ou varíola?) que depois da Abolição, no fim do século, se abatera sobre o Rio de Janeiro, ocasião em que morreram os pais da pequena Augusta Cinegalia, recém-chegados da Europa. O irmão ficara no Rio, mas ela foi criada por Tereza de Souza e Castro, irmã do Intendente. “Infelicitada”, como se diria no tempo, por um dos freqüentadores da casa, em virtude da incompreensão da época sofreu depressão nervosa, a ponto de Tereza Souza e Castro ir com ela viver em casa separada, e finalmente, Augusta morreu em asilo de loucos.
Inspirado na historia de Augusta, Thiollier registraria de maneira ficcional o drama dessa menina, em seu livro de contos A louca do Juquery editado nos anos 1930, e que contou com capa e ilustrações de Tarsila, além de desenhos de autoria de Flávio de Carvalho para outras histórias. Nesse conto que é o titulo do livro, “Beatriz” é a menina infelicitada, “carcamana imigrante” (assim chamada preconceituosamente pelos que frequentavam a casa), filha de criação de “Maria Raimunda”, criticada por muitos de sua família por ter feito a opção de adotar a menina. Já “Trajano”, que narra sua historia e descreve o Juquery parece-se antes com Osório Cesar, que trabalhou durante anos em Franco da Rocha.
Portanto, como se vê, o nome da rua da moda dos anos 1960 em São Paulo, vem de inspiração numa personalidade infeliz, Augusta Cinegalia, reflexo da mentalidade estreita de uma época.
sobre a autora
Aracy Amaral foi diretora da Pinacoteca do Estado de S.Paulo (1975-79) e do Museu de Arte Contemporânea da USP (1982-86). Professora Titular em História da Arte na FAU-USP até 1990. Fellowship da John Simon Guggenheim Memorial Foundation, 1978. Curadora de várias exposições no Brasil e América Latina. Membro do Comitê Internacional de Premiação do Prince Claus Fund, Haia, 2002/2005. Coordenadora de Rumos Itaú Cultural 2005/6. Curadora na Trienal de Santiago, Chile, 2009, e na 8ª Bienal do Mercosul, 2011. Tem publicado livros sobre o modernismo no Brasil, arte contemporânea brasileira e latino-americana, além de organizar antologias sobre arte brasileira.