A Bélgica, internacionalmente conhecida pela suas cervejas e pelo seu chocolate, ficou ainda mais célebre nos anos 2010 e 2011, quando levou exatos 541 dias para formar um gabinete governamental, tornando-se detentora do recorde do mais longo governo provisório em um país ocidental. Depois das eleições ocorridas no dia 25 de maio deste ano, em meados de setembro a Bélgica ainda não tinha conseguido formar um governo e, nesse sentido, uma pergunta se impõe: por que é tão difícil para um país democrático, fundador da União Europeia, ter um governo de pleno funcionamento? A resposta a essa pergunta não é simples, e se explica na própria complexidade política desse país, dividido por uma “fronteira linguística” que separa valões de língua francesa de flamengos que falam neerlandês. Mas o uso de diferentes línguas não explicaria, por si só, a dificuldade em formar um governo, uma vez que a Suíça, por exemplo, não apresenta o mesmo problema. O político flamengo Bart de Wever, do partido nacionalista N-VA (Nova Aliança Flamenga) afirma que a Bélgica é composta por duas democracias, uma ao Norte e outra ao Sul, e que estas seriam absolutamente diferentes, valões votando em partidos de esquerda e flamengos votando em partidos de direita (1). E talvez nessa afirmação – que é usada por ele para defender o separatismo – encontrássemos uma pista para elucidar a questão
O fato é que, a partir dos anos 1970, após, portanto, a instituição da “fronteira linguística”, os partidos políticos belgas dividiram-se em “alas linguísticas”, resultando na situação inusitada de que a Bélgica não tem partidos nacionais, isto é, partidos que poderiam ser votados por eleitores de todo o país. Dessa maneira, os valões só podem votar em partidos de que se apresentam na sua região de língua francesa e o mesmo ocorre com os eleitores flamengos. Isto significa que um eleitor belga é sempre confrontado com uma questão que é, no mínimo, delicada sob o ponto de vista da democracia: ele terá um Primeiro Ministro de um partido político no qual não apenas ele não votou, mas que estava impedido por lei de fazê-lo. O Primeiro Ministro demissionário, Eliodi Rupo, pertence aos quadros do PS (Partido Socialista valão), cujo programa os flamengos conhecem muito vagamente, e cuja carreira política a maioria dos eleitores dessa região não conhecem. A mesma constatação é válida para o Primeiro Ministro anterior, Yves Leterme, político do CD&V (Partido Social Cristão flamengo), que se apresentou apenas aos eleitores flamengos (2). Fazendo uma analogia, seria mais ou menos como ser dirigido por um político estrangeiro: ele fala de maneira apenas aproximada a sua língua e você não pode votar nele, mas, ainda assim, ele decide os rumos da sua vida.
Sob esse prisma, é fácil entender como é difícil formar um governo na Bélgica, e é difícil de entender como eles ainda conseguem formar um. Mas, para esclarecer um pouco melhor, faz-se necessário explicar a intrincada situação institucional do país, que, de país unitário dividido em províncias, se tornou, a partir da instituição da “fronteira linguística” nos anos 1960, um país federal. Assim, a Bélgica divide-se em três regiões administrativas: Flandres ao norte, a Valônia ao sul e, no centro, RBC (Região de Bruxelas Capital, composta por dezenove distritos), e cada região é autônoma nas suas competências e, a este título, tem um governo e um parlamento. Seria simples se terminasse assim, mas a questão é mais complexa: ainda há, como instâncias administrativas, as “Comunidades”: a Comunidade Flamenga (que se “fundiu” com a região), a Comunidade Francesa (recentemente rebatizada Federação Valônia-Bruxelas) e a Comunidade Germanófona (há cerca de 70.000 almas belgas que tem no alemão a sua língua materna) (3). E, mais uma vez, formam governos autônomos e parlamentos, com competências próprias. E, de que maneira separaríamos um governo de outro, isto é, o das regiões e o das comunidades? De uma maneira geral, diríamos que as regiões governam o território (por exemplo, o ordenamento das cidades), enquanto as comunidades se encarregam das pessoas (por exemplo, o ensino). E, ainda há outra instância governamental, o “Federal”, aquele no qual políticos valões e flamengos têm que se reunir para a árdua tarefa de formar um governo; e, como as províncias não foram abolidas, ainda há essa instância governamental. Ou seja, para um país composto de cerca de onze milhões de habitantes ocupando um território exíguo, há muitas instâncias governamentais, e é extremamente comum que um político tenha inúmeros cargos: por exemplo, alguém pode ser senador e, ao mesmo tempo, prefeito de uma cidade. Além disto, uma comitiva belga viajando no exterior é, necessariamente, numerosa, posto que cada instância governamental, ao menos em princípio, deve ser representada (por exemplo, quatro ministros da agricultura, os três regionais e o federal).
Não é por acaso que os belgas dizem que a Bélgica é o “país do surrealismo”, e não é por acaso, igualmente, que a Bélgica tem uma dívida pública que oscila sempre por volta de 100% do PIB; ora, custear essa máquina administrativa não pode ser barato. Assim, uma pergunta deve ser feita: como eles chegaram a tal situação? A resposta se encontra no fato de que, a cada reforma institucional (foram exatas seis), criavam-se instâncias administrativas e, contudo, não eram abolidas as anteriores, criando-se possíveis – e inevitáveis – superposições na esfera de poder. Resumindo o que poderia ser escrito facilmente em duzentas páginas, diríamos que a história desse país sempre foi marcada por um antagonismo entre valões e flamengos, e que as reformas administrativas sempre terminaram por separá-los. O resultado obtido foi a situação “surreal” descrita acima: uma máquina administrativa excessiva e a extrema dificuldade de se formar um governo federal que pudesse governar todos os belgas e pelo qual todos se sentissem representados. Mas há, ainda, um agravante: os valões são francófonos e os Bruxelenses, cuja região está no coração do país, são, igualmente, de língua francesa... (4) Isto é, o antagonismo não é somente entre flamengos e valões, mas entre flamengos e francófonos. Ou seja, trata-se de uma disputa histórica de uma região que se reconheceu, em uma recente “constituição regional”, como uma “nação” (Flandres), com uma comunidade que se reconhece e se identifica pelo uso de uma língua, o Francês.
Flamengos e francófonos, essas duas distintas “etnias”, não se conhecem mais, não se frequentam (a taxa de casamento entre pessoas dessas distintas comunidades é extremamente baixa), não leem os mesmos jornais e têm diferentes sistemas educacionais (5). O resultado é que os homens políticos desse país não conversam a não ser no período pós-eleitoral, quando têm que se reunir para formar o “governo federal belga”. E uma das dificuldades em formá-lo (e que está longe de ser a única) reside no fato de que os políticos dessas duas comunidades conhecem os anseios e as necessidades apenas da sua própria comunidade linguística, e frequentemente tratam a outra com preconceito: o valão, para um flamengo, é “preguiçoso” e “lento”, o francófono (englobando, portanto, o bruxelense) é “arrogante”; por sua vez, para um francófono, o flamengo é “fascista”. Quando duas distintas comunidades partilham um país, mas não se dão ao trabalho de se conhecer, os preconceitos têm vida longa, já os governos...
notas
1
Fonte: http://www.rtl.be/info/belgique/politique/911588/de-wever-la-belgique-est-une-addition-de-deux-democraties. Curiosamente, a Bélgica se constitui um único exemplo de um país cuja maioria (os flamengos) quer se ver livre da sua minoria (os francófonos); normalmente, é a minoria de um país que se torna separatista, como os escoceses, os catalães e os quebequenses. Os flamengos, sobretudo os nacionalistas, sempre sentiram o Estado belga como um elemento opressor em relação a sua cultura germânica.
2
Não se pode acusá-lo ser ligado ao seu próprio país; em uma entrevista concedida ao Jornal francês Libération, Yves Leterme declarou: “A Bélgica não é um valor em si. (...) O interesse de ter um governo federal está em segundo plano em relação aos interesses de Flandres (...). A Bélgica nasceu de um acidente da História, é necessário que nos lembremos disto.” E: “O que nós temos em comum? O Rei, a equipe de futebol, algumas cervejas...” E acrescentou: “Aparentemente, os francófonos não estão no estado intelectual de falar Neerlandês.” Fonte: http://www.liberation.fr/monde/2006/08/18/d-un-etat-unitaire-a-un-etat-federal_5969. Palavras inacreditáveis vindo de um Primeiro Ministro... Belga! De nome e sobrenome... Francês!
3
Um pequeno território da Alemanha foi anexado à Bélgica, depois da Primeira Guerra Mundial, como indenização.
4
Há, ainda, cerca de trezentos mil francófonos que residem em Flandres, e que querem ser reconhecidos como “minoria histórica”; e estes possuem até mesmo um partido político com representação de um deputado no parlamento regional flamengo (que, curiosamente, situa-se em Bruxelas...).
5
Há situações inacreditáveis: há cerca de dois anos, uma escola de língua neerlandesa no distrito de Jette, em Bruxelas, proibiu os pais de alunos francófonos que estavam matriculados de lhes falarem em francês, não apenas dentro da instituição de ensino, mas, igualmente, nas suas cercanias. Este é um exemplo a mais das dificuldades de coabitação entre francófonos e flamengos. Fonte: http://www.lefigaro.fr/international/2012/02/15/01003-20120215ARTFIG00461-une-ecole-belge-punit-ses-eleves-qui-parlent-francais.php
sobre o autor
Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima, arquiteto e urbanista, Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Autor do livro Arquitessitura; três ensaios transitando entre a filosofia, a literatura e arquitetura. Professor Assistente da Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Arquitetura e Urbanismo.