É comum no ambiente acadêmico europeu, inclusive no italiano, que ao falecer um grande mestre, seu “allievo” mais próximo ou seus colegas da Universidade, escrevam a respeito do seu legado. Com o urbanista e engenheiro de formação, Bernardo Secchi não foi diferente: Stefano Boeri, Stefania Fiorentino, Vittorio Gregotti, Carlo Olmo, dentre tantos, assim o fizeram, com o “cuore”, como gostam de fazer os italianos.
A repercussão internacional do seu falecimento, que em grande medida reflete a importância de sua obra, pode ser notada tanto pelos grandes jornais, que o consideraram como “le plus grand architecte urbaniste italien du 20e siècle”, ou ainda, pelas colocações elencadas nos jornais das cidades onde ele foi o “padre” do plano diretor. Os sentimentos expressos são de imenso pesar.
No Brasil, nos últimos dez anos a obra e a presença de Secchi foi uma constante, preenchendo uma grande lacuna entre planejamento e projeto, pesquisa e proposição e entre debate, análise e o projeto da cidade contemporânea. Logo, não como um “allievo” aos moldes italianos, mas por uma efetiva relação de trabalho e de pesquisa desenvolvidos durante a elaboração do Plano Diretor Participativo do Município de Agudos, cabe parte dessa incumbência ao grupo de pesquisa em Sistemas Integrais Territoriais e Urbanos – GRUPO SITU, da Unesp - Campus de Bauru.
Foi exatamente há dez anos, ao término do mês de maio e início de junho, quando, em meio ao grupo SITU o professor Secchi completou seus 70 anos no galpão de uma fábrica abandonada, local onde foi montada pela primeira vez no Brasil a exposição “New Territories” e que sediou o primeiro workshop internacional “Conhecimento Histórico-Ambiental Integrado na Planificação Territorial e Urbana: um contributo de Bernardo Secchi”.
O evento itinerante, que passou por São Paulo, São Luiz do Paraitinga, Santos, Campinas, Sorocaba, e Agudos, foi na realidade, a ocasião para indagarmos grandes mestres com o fito de construirmos um itinerário de pesquisa. E assim Bernardo Secchi ao lado dos geógrafos Aziz Ab` Saber (IEB – USP) e Jüergen Richard Langenbuch (Unesp - campus de Rio Claro), dos arquitetos e urbanistas José Cláudio Gomes (FAU-USP/Unesp) e Witold Zmitrowicz (FAU-USP), nos conduziram, do litoral ao interior do estado de São Paulo, debatendo as transformações da paisagem e seus processos de interiorização, remontando a formação das “franjas pioneiras”, estudadas in primis pelo geógrafo francês Pierre Mombeig (1908-1987), e que também foi apresentada à Universitè Sorbonne como tese de doutorado com o título Pionniers et Planteurs de São Paulo, com a qual recebeu o prêmio da Fondation Nationale des Sciences Politiques de Paris, em 1950.
Naquele momento, se consolidava tanto o grupo de pesquisa SITU, quanto se delineavam os objetivos do Plano Diretor Participativo do Município de Agudos em torno da ideia de “laboratório”. Ambos, deveriam exprimir que o conhecimento baseado em parâmetros determinados a partir da pesquisa aprofundada do território, seriam considerados como premissa iniludível à intervenção, antecipando os temas e os lugares do projeto, ratificando assim, a ideia de que qualquer área seria tratada de forma a evidenciar os efeitos das diversas atividades e das diferentes características físicas, à luz do inteiro sistema em que estava inserida. Portanto, a intervenção se desenvolveria baseada na análise da agricultura, morfologia do construído, dos deslocamentos da população e atividade edilícia, dos princípios de assentamentos da indústria e do terciário, comércio, turismo, das infraestruturas e mobilidades, em um constante jogo de escalas.
O intervalo entre o primeiro e segundo workshop, que contou com a presença de Paola Viganò, Paola Pellegrini e Emanuel Gianotti, do Studio 09 e do Doutorado em Urbanismo do Istituto Universitario di Architettura di Venezia, foi caracterizado por um cronograma de leitura da cidade no seu território a partir de extensos levantamentos, não seguindo somente a estrutura dos planos diretores desenvolvidos em pequenas e médias cidades, mas levando em consideração a máxima do grande mestre: “urbanismo se faz a pé”.
No extremo de exaustão da análise, começamos a nos apoiar na construção de cenários hipotéticos, que significou a completa anulação de dois processos até então estanques: análise e projeto. Essa passagem, inicialmente tomada de forma natural pelos grupos formados pelas docentes, Marta Enokibara, Norma Constantino e Kelly Magalhães, e pelos alunos/estagiários de Arquitetura da Unesp – Campus de Bauru, foi rapidamente pinçada e debatida pelas duas equipes como projetos exploratórios, tendo o desenho como gerador de conhecimento, tema de um livro, que segundo Secchi, estava sendo escrito pela professora Viganò.
Mais recentemente, a distância de Secchi das pequenas e médias cidades - que ainda são nossos objetos de reflexão e de trabalho -, aumentou em função da demanda que as metrópoles brasileiras como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Brasília, entre outras começaram a colocar. Mas mesmo assim, os seus livros, suas discussões e seus planos como sua participação no Le Grand Paris, que foram seguidos à distância por todos nós, alimentavam o orgulho dos agudenses, que tiveram o privilégio de seu convívio, e a nossa certeza de termos sido aconselhados não somente por um dos maiores urbanistas do século XX, mas por um dos maiores mestres que transitava do urbanismo e da arquitetura, para a música, filosofia, cinema, literatura, história, sociologia e para a geografia.
Seu último livro, La città dei ricchi e la città dei poveri, apresentado por intelectuais italianos na Trienal de Milão de 2014 em comemoração aos seus 80 anos, explicita já no título, o quanto o Brasil assumiu importância para as últimas indagações do Mestre. A nós, ficou a alegria do convívio e a certeza da longevidade de seus ensinamentos.
sobre o autor
Adalberto da Silva Retto Jr é professor da Unesp de Bauru e Visting Scholar Université Sorbonne Paris I.