No hoje longínquo e lendário ano de 1968, Nelson Rockfeller, herdeiro de uma das mais ricas e predadoras famílias do mundo, veio ao Brasil naquelas clássicas visitas de "boa vizinhança” à ditadura militar. Os ventos da revolta já estavam assanhando os corações e mentes. A guerra do Vietnã exibia a escalada de violência americana, despejando mais bombas do que em toda 2ª Guerra Mundial. Naqueles dias dois livros caíram em minhas mãos: Meu amigo Che, de Ricardo Rojo e O manifesto comunista, de Marx e Engels. A fracassada aventura do “Che” em terras bolivianas e a luta de classes atearam literalmente fogo em minhas ideias.
Dias antes da chegada fui ao banheiro da escola e havia um pequeno cartaz com os seguintes dizeres: “Rockfeller vem aí. Pau nele!”. Nos dias seguintes tiveram protestos e passeatas por todo o país. Nossa antes movimentada e algo feérica W3 era o palco das batalhas campais com a polícia. Todos sabem como terminou o ano de 1968: acirramento da ditadura, fechamento do congresso, prisões, tortura e morte.
A curiosidade pela leitura despertada é um novelo inesgotável, um livro puxa o outro. Nesta fiada vieram Origens da família da propriedade privada e do Estado, de Friedrich Engels, e Eros e a civilização, de Herbert Marcuse. O primeiro para mim, à época, tal qual o Manifesto, explicava tudo. Era a chave para o entendimento do mundo. O segundo, uma mistura explosiva de sexo, psicanálise, filosofia e marxismo abriam portas até então lacradas para um “calango” de Brasília. Era o mundo da então chamada “contracultura”.
A entrada na universidade multiplicou as leituras e interesses. Mas já havia uma “picada aberta” por onde vieram As três fontes constitutivas do marxismo, de Vladimir Lenin, dissecando as principais influências do pensamento socialista: o socialismo utópico francês, ao qual mais tarde pude estudar com detalhes nas aulas de Teoria da História da Arquitetura e do Urbanismo; a filosofia alemã, especialmente Hegel, e a economia política britânica de Ricardo e Adam Smith. O contrato social de Rousseau foi muito importante para um posicionamento na linha do tempo e para a percepção dos conflitos entre os direitos individuais e os coletivos. Deu para ver também que o caminho era mais longo e conflituoso do que eu pensava.
Fui brevemente seduzido pelas ideias anarquistas, ao ler Anarquismo: roteiro da libertação social, de Edgard Leuenroth, um tipógrafo revolucionário que liderou as primeiras greves proletárias no Brasil. Um dos maiores centros de documentação dos movimentos operários no Brasil, localizado na Universidade de Campinas – Unicamp, leva seu nome em homenagem a sua dedicação e pioneirismo. Por esse tempo também tive um flerte prolongado com o trotskismo. A leitura da História da revolução russa – uma monumental resenha crítica daqueles dias de outubro de 1917, narrada na terceira pessoa – tornou Leon Trotsky alvo da minha admiração permanente. A descrição da tomada do Palácio de Inverno pelos revolucionários, depois retratada por Sergei Eisenstein, é inesquecível. Além disso, a “Libelu” tinha festas ótimas, onde as socialistas eram mais bonitas.
Rumo a Estação Finlândia, do crítico americano Edmund Wilson, embora demasiado objetiva e algo desapaixonada, é uma obra essencial para quem quer estudar a história do socialismo. Rigorosa e bem construída, ajuda a entender afinal o que é materialismo histórico e materialismo dialético. De Babeuf, revolucionário francês guilhotinado pelo Diretório, passando por Saint-Simon, Fourier, Proudhon, Marx e finalmente chegando ao desembarque de Lenin em São Petesburgo e a revolução russa. Sua leitura foi fundamental para entender o encadeamento das ideias, como se chegou a 1917 e, embora escrito no início dos anos 1940, para perceber as origens da desagregação do socialismo “real” 50 anos depois. Fecho este artigo escrito mais pela saudade do tempo em que fiz essas leituras, do que qualquer outra coisa, com um dos livros mais emocionantes de todos os tempos: Os dez dias que abalaram o mundo. A epopeia do jornalista e revolucionário John Reed através da Rússia, até chegar ao epicentro da revolução comandada por Lenin, não é só uma grande obra de história e literatura; é, sobretudo, uma aventura existencial e filosófica. Se tiverem que escolher um livro desses que citei para ler, escolham Os dez dias. Vocês não se arrependerão.
Caros leitores, não pensem que sou um revolucionário ou algo do gênero, embora as ideias da juventude continuem vivas em um avô que já começou a “subir a montanha” a procura de uma visão panorâmica que ajude a entender a vida e o passar célere do tempo. Confesso que tenho saudade de um tempo onde alguns faróis ideológicos nos eximiam da angústia das escolhas e eliminavam nossa perplexidade. Mas ao mesmo tempo, me sinto desapegado para pensar a esmo e valorizar minha experiência. Parafraseando Ítalo Calvino, acho que trouxemos para o século 21 muitas coisas que deveríamos ter deixado para trás: crença em um progresso perpétuo, consumo, guerra, preconceitos étnicos e religiosos, exclusão e pobreza.
sobre o autor
Luiz Philippe Torelly é arquiteto e urbanista. Trabalha no Iphan.