A objetiva da máquina fotográfica aparta e reúne dois mundos: o do observador e o do objeto observado. Diante da multiplicidade quase infinita de coisas animadas e inanimadas, que na sua combinação conformam as paisagens possíveis, o olhar estético enquadra algo que já existe, mas que passa a existir de outra maneira. Algo como uma bexiga de borracha inerte que ganha graça ao ser inflada com ar. Compreender a imagem fotográfica é uma busca do sopro que une os dois mundos.
O primeiro olhar voltado para os registros apresentados na exposição Garagem Automática se depara com empenas cujo reboco parcial revela em suas faces externas vigas e pilares de concreto preenchidos com tijolos e blocos. Edifícios incompletos ou arruinados, sem virtudes formais e técnicas. E a penumbra densa e fria dos interiores vazios sugere uma hecatombe em que foi varrida a vida humana.
O incômodo nos leva ao segundo olhar, agora atento aos detalhes, aos vestígios, examinando sinais que denunciem significados ocultos. A série nos traz o conforto de conhecer para além do mundo gélido descortinado pela foto isolada. Luzes artificiais iluminam planos que brotam do breu; cabos de aço, correntes, roldanas e polias em bom estado de manutenção sugerem o movimento monocórdico do elevador, o passar lento do automóvel, o vaivém atribulado do manobrista; painel com luzes vermelhas manifesta uma operação em curso.
Felipe Russo, fotógrafo atípico, é biólogo que trabalha como pesquisador durante os anos 2000. Como auxiliar de pesquisa no Instituto de Biologia da USP, produz documentos fotográficos, além de separar e catalogar material coletado nas saídas de campo. Hábitos arraigados em sua sensibilidade: observar paciencioso fenômenos invisíveis aos olhos despreparados, classificar uma espécie a partir de semelhanças entre espécimes diferentes, entender um ecossistema como universo onde interagem meios biótico e abiótico.
Na sua construção estética se verificam as marcas indeléveis da formação científica do fotógrafo quando jovem. Ao invés do virtuosismo no uso de recursos de sua arte –enquadramento, iluminação etc. –, verifica-se uma calma busca do extraordinário e do estranho na reiteração do quase igual. Graças à coleção de “espécimes” que habitam aquela enorme câmera obscura, obtém uma garagem anônima, prototípica.
O robô automatizado que manipula automóveis – “a máquina que guarda máquinas”, na definição do autor – é registrado por câmera de grande formato, com negativos coloridos de 10 x 12 cm, de longa exposição. A excelente definição resultante permite grandes ampliações, onde se vê a estampa de fumaça de escapamento na parede, a marca de pneus no chão, a fuligem e a poeira grudadas nos objetos.
A Garagem Automática de Felipe Russo é um registro do tempo estendido, subjetivo, decalcado nos artefatos do homem.
nota
NE – Texto de divulgação da exposição Garagem Automática, de Felipe Russo, Casa da Imagem, São Paulo, de 9 de julho de 2016 a 16 de outubro de 2016. Disponível em <www.museudacidade.sp.gov.br/exposicoes-expo.php?id=157>.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.