Um profissional de arquitetura que herda um sobrenome forte pode carregar um dilema para o resto da vida? Na cabeça de Oswaldo Bratke (1907-1997) isso fazia sentido, em relação principalmente ao seu segundo filho, Carlos Bratke (1942-2017). Oswaldo recordava que a única descendência bem-sucedida na história da arquitetura ocorreu com Eliel Saarinen (1873-1950) e Eero Saarinen (1910-1961). E Oswaldo sabia também que pai e filho mantinham diferenças marcantes.
A relação pai/filho envolve questões para além das afetividades e rusgas geracionais. No final do século 20, Oswaldo era o pai de Carlos Bratke. No início do século 21, Carlos era o filho de Oswaldo Bratke. Como um paralelo, isso sucedeu com Sérgio e Chico, os Buarque de Holanda.
Essa alternância de prestígio, no mundo da arquitetura, tem a ver com as flutuações da crítica e da historiografia frente à modernidade/pós-modernidade. Oswaldo fez parte de uma plêiade de arquitetos modernos brasileiros: Oscar Niemeyer (1907-2012), Roberto Burle Marx (1909-1994), Affonso Eduardo Reidy (1909-1964), Álvaro Vital Brazil (1909-1997), entre outros, nascidos na primeira década do século 20. Essa modernidade, que simbolicamente tem na realização de Brasília o seu apogeu, foi contestada nos anos 1980. Sendo mais preciso, a contestação rejeitava as soluções formais e urbanísticas de uma modernidade ortodoxa, a transfiguração de fundamentos em receitas indiscutíveis, a transformação de diretrizes em fórmulas acríticas, exercidas como “verdades”. A negação dessa modernidade epígona, não distinguindo diluições de princípios, parecia apontar a falência dos valores instaurados pelas vanguardas arquitetônicas antes da 2ª Guerra Mundial. Oscar Niemeyer, quando contemplado com o prêmio Pritzker, foi classificado por um uma revista norte-americana como “impenitente moderno da velha guarda”. Essa premiação de Niemeyer aconteceu em 1988, em plena vigência do que se chamou de pós-moderno na arquitetura.
Carlos Bratke formou-se em 1967 na então Faculdade de Arquitetura do Mackenzie. No ano em que Niemeyer ganhou o Pritzker, ele (Carlos) já havia construído, com pouco mais de 40 anos de idade, o edifício Ars (hoje denominado Oswaldo Arthur Bratke), no qual dividia alguns andares com seu irmão e primo na empresa Bratke & Collet, na Avenida Luiz Carlos Berrini. Esse edifício, e vários vizinhos, antes e depois, modificaram a feição daquela artéria e o bairro de Brooklin. Um case para estudos urbanísticos, da expansão do chamado setor terciário avançado, empreendedorismo imobiliário e exclusão social, suficientemente difundido para merecer até um verbete na Wikipedia brasileira.
Carlos Bratke emergiu, com pouco mais de 30 anos de idade, em um meio profissional paulistano no qual as figuras principais na arquitetura corporativa eram veteranos dos anos 1960 ou antes, como Croce, Aflalo & Gasperini, Roger Zmekhol, Rino Levi Arquitetos Associados, Botti & Rubin, Maurício Kogan (não confundir com Márcio), Szpigel & Magalhães, Júlio Neves. Esses grandes escritórios estão todos representados na Avenida Paulista e na Avenida Faria Lima. Há uma torre de Carlos Bratke na Avenida Paulista, o Edifício Banco Noroeste (1973), e um na Avenida Faria Lima, o Edifício Apolo II (1972) que destoavam das puras caixas de cristal: em concreto aparente, com elementos pré-fabricados de proteção solar ou vigas sombreadoras. Seus edifícios da Berrini foram, pouco a pouco, refinando essas realizações, afastando-se do cânone envidraçado Paulista-Faria Lima, produzindo um desenho que se diferenciava do modo corrente da arquitetura de torres empresariais.
Sua obra mais visível ao grande público e da mídia (que se confirma na cobertura da imprensa, em seu falecimento) são os edifícios ao longo da Avenida Luiz Carlos Berrini, hoje talvez atenuados em meio ao conjunto construído que ladeia a via. Quem viu, nos anos 1970-1980, aquelas poucas torres isoladas ao longo da avenida, não vislumbraria o futuro desse empreendimento de origem familiar. Quem hoje acha natural que a Avenida Faria Lima tenha sua continuidade na Berrini e na Avenida Chucri Zaidan, não faz ideia do que era essa região há trinta anos, quando os Bratke começaram.
A arquitetura de Carlos Bratke criou uma nova paisagem na metrópole paulistana. Configurou um diferencial estético e construtivo no campo da arquitetura empresarial, sobretudo a das torres corporativas. Trouxe uma nova distinção qualitativa: obrigou o mercado imobiliário a sair da zona de conforto.
Várias notícias publicadas sobre Carlos Bratke – como a da Folha de S. Paulo ou na matéria do CAU/BR online – o classificam como um “não alinhado”, sem precisar do que se trata. O que é um “não alinhado”?
Foi em 1982 que o editor da antiga revista Projeto, Vicente Wissenbach, organizou bate-papos com Roberto Loeb, Tito Lívio Frascino, Eduardo Longo, Pitanga do Amparo, Carlos Bratke, Vasco de Mello e Arthur Navarrete. Essas conversas resultaram na matéria “É preciso sacudir a poeira, criticar, discutir, se encontrar” (revista Projeto nº 42), não assinada, de autoria de Wissenbach, Ruth Verde Zein e Sílvia Penteado. A expressão “não alinhados” compareceu para classificar esse grupo de arquitetos com algumas frentes comuns, com atitudes por uma arquitetura “não dogmática, ou relativamente imune a princípios preestabelecidos, demasiados ascéticos”, ou “mais espontânea, e até híbrida... aliando a memória histórica, a experiência já digerida do modernismo, o contexto local da obra, a diversificação espacial e expressiva”, entre outros posicionamentos, conforme se extrai da matéria. O debate promovido por Wissenbach tinha a ver com certo desconforto vigente em relação à chamada “Escola Paulista”, e mesmo à “Escola Carioca”. Esse não-alinhamento se relacionava, em um plano cultural maior, ao emergir da condição pós-moderna no início daquela década; no plano local, às manifestações brasileiras de arquitetura pós-moderna, entre os quais Carlos Bratke era uma versão soft, frente ao hardcore do mineiro Éolo Maia (1942-2002), seu exato companheiro de geração e de mesas de bar. A sobriedade do empresariado paulistano controlou a estética inicial das torres de Bratke, que se associava a uma condicionante nunca visível: a economia de meios definida em projeto, custos controlados pela empresa do irmão, que disciplinava a relação entre a forma, função e orçamento. Nesse quesito, decerto pesou o aprendizado, talvez inconsciente, com o pai, um mestre da racionalidade em todos os sentidos.
Carlos Bratke pertenceu a uma aristocracia da arquitetura paulista. Passou sua infância entre as pranchetas do escritório do velho Bratke. Como seus colegas de turma, formou-se com as “verdades” modernas, cuja diluição estava entre as inconformidades de uma geração que não formulou, mas herdou um conjunto de valores que se desgastavam em confrontação com a realidade. Nesse sentido, a obra de Carlos Bratke carrega uma franqueza, uma insubmissão geracional genuína, que difere daquela adaptação ou acomodação que a arquitetura corporativa havia alcançado e se praticava nos anos 1970, durante o chamado “milagre econômico” no Brasil. Em Carlos Bratke havia uma experimentação, fortemente determinada por condições pragmáticas do empreendedorismo imobiliário, e impregnada de uma vontade de trabalhar como ateliê de projeto, de índole autoral, não como uma razão social de grande empresa de arquitetura.
As credenciais de um arquiteto reconhecido, com muita presença urbana, a permeabilidade com o mundo empresarial, e o sobrenome (seu pai foi um dos conselheiros-fundadores da Bienal de São Paulo) explicam sua dedicação extra-ateliê, com passagens como presidente da Fundação Bienal de São Paulo, diretor do Museu da Casa Brasileira e presidente do departamento paulista do IAB.
Exímio desenhista (dizia-se artista plástico frustrado) prefigurava sua imaginação espacial com o lápis, com a caneta – como o pai. Também como o pai, olhava com atenção a estrutura, o detalhe, a solução conjunta. Exerceu certa liberdade de caminhos na arquitetura – talvez mais do que permitido no sábio discernimento do velho Bratke – motivo pelo qual eram explícitas as divergências entre pai e filho. Avançou na arquitetura, como se equivocou; navegou nas incertezas e certezas dos tempos pós-modernos, diversificou e arriscou. Por isso, nunca conquistou unanimidade no meio. Vale dizer que seu pai também não, em seu tempo.
Com o desmoronamento da arquitetura pós-moderna, uma certa produção situada sobretudo nos anos 1980 tem menor visibilidade aos olhares modernos ou neomodernos hoje vigentes. Carlos Bratke, Éolo Maia, ou mesmo o guru Robert Venturi, perguntados se arquitetos pós-modernos, responderam categoricamente: “não”. A questão não é examinar o rótulo, o estilo, a moda dessas arquiteturas. No caso de Carlos Bratke, trata-se de verificar com serenidade como sua arquitetura mudou a percepção da arquitetura corporativa. Não só pelos críticos e historiadores (aqueles que entendem que a história da arquitetura também se realiza com o reconhecimento das torres e paisagens empresariais), mas também pelo mundo dos negócios (clientes, talvez a porção mais importante na equação do fazer arquitetura) e no imaginário citadino, que entende a expressão “Bratkelândia”.
Frequentei bastante a casa de Oswaldo Bratke. Às vezes, Carlos passava por lá, para almoçar com Oswaldo e Dona Helena, sua mãe. Carlos era um homem cordial, um pouco introvertido, que poderia ser em um dia um homem doce, e no dia seguinte, irreconhecível. As divergências entre pai e filho eram arquitetônicas. O respeito ao patriarca era extraordinário, e não há como deixar de admirar a paixão comum pela arquitetura que ambos cultivavam. Nesse ponto, o pai talvez tenha sido duro demais com o filho. Carlos não foi apenas o filho de Oswaldo. Carlos tem luz própria.
[São Paulo, entre 9 de janeiro e 6 de fevereiro de 2017]
sobre o autor
Hugo Segawa é arquiteto, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Autor dos livros Arquiteturas no Brasil 1900-1990 (Edusp, 1998, 2013), Jayme C. Fonseca Rodrigues (Bei, 2016), coautor de Oswaldo Arthur Bratke (ProLivros, 1995, 2012).