Durante a vida, cada homem habita três tipos de casa. O corpo, a primeira das casas, agasalha a estranha energia que interage com o mundo através dos sentidos para a seguir o elaborar via intelecto. A segunda é a casa da família, com os cômodos, objetos e artefatos que sustentam nossos hábitos, costumes, necessidades e (des)prazeres. Na terceira moradia entramos ao atravessar a soleira da porta e pisar a calçada pública que nos conecta com homens de famílias alheias. Sujeito às vicissitudes do tempo e do espaço, cada habitat tem sua história e sua geografia, mas tem também seu cuidador profissional, responsável pela saúde do corpo e sanidade do espírito. O médico cuida do corpo, abrigo primordial; ao arquiteto cabe zelar pelas outras duas, a casa da família e a cidade da sociedade. São eles os mais importantes profissionais de qualquer agrupamento humano.
Essa ideia me surgiu há alguns anos, ao ser obrigado pela circunstância a discursar para alunos e familiares em cerimônia de formatura. O desamparo dos pais e o medo dos filhos frente a um futuro cheio de obstáculos podem ter sido os motivos subterrâneos que me levaram a conferir ao arquiteto a mesma importância do médico. Ter um filho médico, imagino eu, é mais confortável do que ter um filho arquiteto. Ainda me recordo da reação positiva da plateia e desde então me perguntei ocasionalmente se a frase de efeito foi um engodo para ganhar aplausos ou se ela tem algum sentido e profundidade. A questão voltou à pauta em recente conversa com meus orientandos de TFG, com quem tenho discutido estratégias de projeto para uma sociedade dinâmica, mutante, fluída.
A transformação constante das três moradas ao longo do tempo é a primeira analogia proposta. O invólucro liso e frágil que guarda nosso ser tão logo se faz o milagre do nascimento se metamorfoseia e passa por estados que podem ser resumidos pelos adjetivos que os qualificam: fofo, liso, brilhante, teso, rígido, frouxo, mole, enrugado, macilento, pútrido. Da casa talvez seja mais simples dizer que o ciclo da vida se revela na perfeição dos encaixes e acabamentos no momento da inauguração, no brilho e nos risco dos planos e anteparos desgastados pelo uso durante os tempos áureos e felizes, nas trincas e fraturas acumuladas no envelhecimento, nos escombros de seu arruinamento final. A complexidade das cidades e sua capacidade quase infinita de se regenerar quase nos consegue enganar, não fossem os achados arqueológicos que nos revelam de forma trágica: elas demoram, mas fenecem. A transformação, o mote inicial da aproximação entre corpo, casa e cidade, cede lugar para sua outra face, a efemeridade da existência, eufemismo para a palavra recalcada, a morte.
Mas é no gozo da vida que as casas se entrelaçam de forma sublime. O ser humano, independente do gênero e em todas as idades, sozinho ou amparado, desloca seu corpo de cômodo em cômodo por sua casa, de recinto em recinto por sua cidade. O aparato físico se desloca pela casa, ultrapassa a soleira e, com pernas, ou rodas diversas, ou máquinas distintas, com algum destino quase sempre, mas às vezes perdido, penetra no líquido amniótico transparente que liga todos os seres e coisas em uma única existência coletiva orgânica. O corpo, como célula básica, se descola do órgão onde se aloja e escorre solto pelos fluídos do organismo vigoroso, pulsante, monstruoso da metrópole. A esse percurso errático Guy Debord, Michel de Certeau, Francesco Careri e minha amiga Paola Berenstein Jacques chamam de errância, experiência nômade ainda possível em nossa existência hegemonicamente sedentária.
Mas o aparato psíquico que se aloja no corpo, que sente o cheiro dos gazes, fezes e flores, o frio da manhã e o calor da fadiga, a luz do sol que ofusca e a sombra da árvore que refresca, os barulhos, ruídos, vozes, músicas e lamentos sem fim, esse pode acompanhar vigilante o périplo de seu duplo, mas pode se evadir, errar de forma mais radical, experimentando vazios, silêncios, a alteridade e até mesmo o vácuo absoluto. Mas corpo e mente voltam para o abrigo do lar e tudo que provaram se aglutinam na experiência individual. Sair de casa e retornar é uma propensão imemorial, que o homem repete ao modo de Sísifo, como penitência, mas como gozo também. Sua expansão pode se enrijecer na vivência ou se desdobrar em arte, navegar em gestos, palavras ou rimas narrando ou cantando a vida que não é precisa.
Mas voltar para casa é uma vontade que se defronta com riscos sem fim, como Ulisses em seu retorno a Ítaca, se livrando com astúcia de monstros e sereias, duelando com os pretendentes que assediam sua bela Penélope (que já nem se lembra mais dele após dez anos de ausência, esquecimento que não deixa de ser um tipo de morte). Voltar para casa pode ser dolorido. Sair de casa e retornar pode ser um desejo inviável, como o personagem de Kafka, que não compreende como alguém decide ir a cavalo à próxima cidade sem temer que “até o tempo de uma vida comum que transcorre feliz não seja nem de longe suficiente para uma cavalgada como essa”, na tradução de Modesto Carone. Voltar para casa talvez seja uma ilusão.
Todas as três casas mudam sem parar, a cada década, a cada ano, a cada mês, a cada dia, a cada minuto, a cada segundo, a cada respiro. E quando a casa menor que habitamos se desloca pelo tempo e pelo espaço jamais vai conseguir voltar ao que era, onde estava. Fluidez sem fim, temporalidade que se esvai, fortuna dos encontros e desencontros entre casulos que se amalgamam, geram outros casulos, também corpos, novas casinholas que vão errar sem fim. Por detrás do tapume do habitar se esconde a verdade profunda da existência efêmera de pessoas e coisas.
Contei para meus alunos um segredo. Muitas vezes fico tentado a voltar para minha casa da infância, lá na cidade do interior de sol abrasante, só para me deitar com as costas desnudas no chão gelado da varanda, ouvir a voz distante da minha mãe falando com a vizinha por cima do muro do quintal, sentir o cheiro de fritura vindo da cozinha, ouvir o apito estridente da locomotiva e o ranger das rodas de metal limando os trilhos, deixar o tempo infinito passar devagar em velocidade quase estagnada, fechar e abrir os olhos para ter a noção do movimento das nuvens, vê-las aos poucos de transformando, ganhando formas de pessoas, bichos e coisas, os que existem e os imaginários, como navios e dragões, que navegam e voam para suas casas. Ter casa é preciso, retornar não é preciso.
PS – para minhas orientandas Rebeca Pak e Gabriela Dal Secco, que sorriram quando lhes contei meu segredo, e para Anita Di Marco e Gisela Barcellos de Souza, que gostam das minhas crônicas.
[23 de setembro de 2016]
nota
NA – Décima primeira publicação da série “Crônicas de andarilho”, com textos originalmente publicados no Facebook. Artigos da série:
GUERRA, Abilio. Cinco cenas paulistanas. Crônicas de andarilho. Minha Cidade, São Paulo, ano 15, n. 179.01, Vitruvius, jun. 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/15.179/5561>.
GUERRA, Abilio. Dez cenas paulistanas. Crônicas de andarilho. Minha Cidade, São Paulo, ano 15, n. 180.02, Vitruvius, jul. 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/15.180/5595>.
GUERRA, Abilio. Sete cenas paulistanas: a velocidade nas marginais e outros assuntos. Crônicas de andarilho. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 181.03, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.181/5637>.
GUERRA, Abilio. Sete cenas paulistanas: caipirice, regionalismo, erudição, cidadania, obra pública e mobiliário urbano. Crônicas de andarilho. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 183., Vitruvius, out. 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.183/5735>.
GUERRA, Abilio. Dez cenas paulistanas: bicicletas, escadarias, caminhadas, rios ocultos, escolas, resiliência, diálogo. Crônicas de andarilho 5. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 185.02, Vitruvius, dez. 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.185/5830>.
GUERRA, Abilio. Sete cenas paulistanas: lixo, lixeiros, orelhão, quadro com vidro trincado, estátuas urbanas, praia de asfalto e Mario de Andrade. Crônicas de andarilho 6. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 187.03, Vitruvius, fev. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.187/5932>.
GUERRA, Abilio. Memórias do futuro: sobre a recusa de se ver o óbvio. Crônicas de andarilho 7. Drops, São Paulo, ano 17, n. 103.02, Vitruvius, abr. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.103/5982>.
GUERRA, Abilio. Oito cenas paulistanas: política, política cultural e urbanidade. Crônicas de andarilho 8. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 191.03, Vitruvius, jun. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.191/6050>.
GUERRA, Abilio. Do nome das coisas: qual o motivo para mudar o nome do Elevado Costa e Silva? Crônicas de andarilho 9. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 193.06, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.193/6167>.
GUERRA, Abilio. Do vizinho: como Jacques Tati e Michel Foucault podem explicar a boçalidade do novo-riquismo. Crônicas de andarilho 10. Drops, São Paulo, ano 17, n. 112.06, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.112/6383>.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.