Vivemos uma época difícil. Entre as meias verdades, as “pós-verdades” e a magnífica invenção do termo “fato alternativo” pela mídia mundial, a mentira não depende mais de nenhum acontecimento real. Ela só depende da vontade de políticos e assessorias de imprensas correlatas em divulgar o que é conveniente.
Alguém já olhou para uma embalagem de ovos que temos nos supermercados? Daquelas transparentes? Olhem.
Tem uma inscrição sensacional: “Alérgicos, contém ovo”.
Isso é lei, obviamente. Essas leis fornecem um ótimo parâmetro para medirmos como esses juristas de hoje veem o que antigamente chamávamos de cidadãos e hoje são tratados como consumidores idiotas.
Muitos anos atrás, um grupo de arquitetos criou uma ONG de Arquitetura. Sonhadores. Achávamos que poderíamos conscientizar a categoria e influenciar o poder legislativo e o executivo para melhorar o modo que o poder público contratava os serviços de arquitetura. Para nós, o papel do arquiteto era (desculpem usar o passado) defender o interesse público. Como diria Oscar Niemeyer, a arquitetura não era importante. O interesse público sim.
Na época lemos a famigerada Lei 8.666. A lei defendia o interesse público de modo exemplar. Defendia a arquitetura. Tínhamos na época (estou falando de 15 anos atrás) apenas dois problemas com ela.
1) A lei defendia os concursos, mas o poder executivo simplesmente ignorava em 99% dos casos o artigo que dizia que para trabalhos intelectuais deveriam se organizar concursos. Ela estabelecia as regras e tudo. Mas poucos davam importância.
2) O outro grande problema da lei era o fato que ela proibia o projetista autor do projeto Básico ser o autor do Projeto Executivo. Era sem dúvida um erro do redator da lei. Passados todos esses anos, a luta para dizer que bastava um adendo para explicitar que o autor do projeto Básico deveria sim fazer o projeto Executivo, mas nunca contratado pela construtora, mas pelo poder público. Só assim o papel dele seria de defesa do interesse público. Só assim ele poderia garantir a qualidade da obra projetada.
Hoje temos uma nova lei em tramitação que substitui a antiga (1). Não sou advogado. Mas sei ler (infelizmente?). Como eu disse em outra ocasião (2), com esta nova lei, que nos vê como consumidores retardados de ovos alérgicos, tudo pode. Quer fazer o Básico e o Executivo? Pode. Está na lei.
Com sutilezas, é claro. Em um parágrafo está dito que não pode, mas você caminha a duras penas pelo texto e constata que o que estava estabelecido era relativo. Não pode, mas pode!
Quer contratar a construtora para fazer o projeto e a obra, sem nenhum controle? Sem problemas, pode.
A lei desconhece magistralmente o que é o trabalho do arquiteto e o papel da arquitetura. Não tem erros nesta lei como tinha na 8.666. Tudo é intencional. Explícito. Tudo mostra que somos apenas consumidores dementes.
nota
1
AGÊNCIA SENADO. Senado aprova alterações na Lei de Licitações e projeto vai à Câmara. Brasília, Senado Federal, 13 dez. 2016 <http://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2016/12/senado-aprova-alteracoes-na-lei-de-licitacoes-e-projeto-vai-a-camara>.
2
CORBUCCI, Jupira. A falsa salvação da nova legislação sobre as licitações. O Projeto de Lei nº 559/2013 legaliza a corrupção no poder público. Drops, São Paulo, ano 17, n. 111.05, Vitruvius, dez. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.111/6331>.
sobre o autor
Jupira Corbucci é arquiteto e sócio titular do escritório Bacco Arquitetos.