Hoje papai faria 74 anos. Um típico virginiano maluco, com sua própria lógica de organização das coisas, das ideias, da vida. Acumulador, bagunceiro aos olhos de alguns, com um parafuso a menos aos olhos de outros; muitas vezes aos meus, verdes e maduros como os de mamãe. Relação de ódio e amor por uma figura ímpar, imperfeita, complicada, adorável. Idiossincrasia em forma de gente.
Talvez lhe faltassem encaixes para tantos parafusos.
Era dele saber onde, no meio daquelas peças, daquela ferrugem toda, estavam a rosca e a porca certas para consertar o ventilador, o controle remoto, o carro, a espaçonave, o universo. Na lata de metal tão enferrujada quanto as peças, no vidro que antes fora de azeitonas, no armário detrás da porta da cozinha onde também ficava o quadro de luz que ele mesmo montou, estavam o seu mundo, suas engrenagens e suas reservas. Muitas.
Quando ainda tinha bigode, papai foi palhaço, malabarista. Atirava laranjas para o alto no quintal estreito. Equilibrava a vassoura de ponta cabeça no pé, no queixo, na testa. Teria sido artista de circo, ele dizia, antes de ser advogado, querendo ser engenheiro. Eu adorava desconfiada esse pai mambembe, cigano. Eu dizia “é mentira”; ele ria “papai não mente”.
Papai acordava umas nove. Lia o jornal e brincava de consertar alguma coisa. Ursulão, nunca terminava. Beberrão, tomava um trago. Advogava; mas foi também mestre de obras, pedreiro, mecânico, funileiro, chapeiro nos finais de semana. Eu devia ter uns treze anos quando, pescador frustrado de uma única enguia fisgada com vara de mão, lançou-se marinheiro.
Papai desafiava o mar, o tempo e o próprio corpo. Adoeceu aos 55 e foi embora aos 66, no alvorecer de uma terça-feira ensolarada, antes que ficasse velho. Como sua embarcação Dona Guadalupe anos antes nas águas de Bertioga, naufragou embriagado, querendo consertar a criança que sempre esteve ali, inteira, viva, feliz, botando o mundo abaixo sem saber como montar depois.
Hoje, quando papai faria 74 anos, nesse mundo que vem abaixo sem que saibamos o que virá depois, nesse mundo de tanto encaixe sem que eu saiba como, mas querendo fazer diferente, fiz o que papai certamente teria feito. Comprei uma parafusadeira elétrica.
nota
NE – Artigo originalmente publicado em 5 de setembro de 2016, no Facebook, por ocasião do aniversário de 74 anos do pai, falecido alguns anos antes.
sobre a autora
Ana Paula Bruno, escorpiana de 8 de novembro de 1976, graduada e doutora em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo. Servidora pública, trabalhou na Prefeitura de São Paulo até 2009, quando mudou para Brasília para trabalhar no Ministério das Cidades, onde está até hoje. É filha de Iansã, apaixonada por pessoas, por cidades e pela língua portuguesa.