Acostumados que estamos com os escândalos financeiros que se repetem em nosso país de maneira quase cotidiana, envolvendo políticos e empresários, caberia uma pergunta – na realidade, duas: é assim em todos os países nos quais há políticos e empresários que vivem em uma relação de quase promiscuidade? E, por outro lado, se a pergunta for respondida positivamente, qual seria a sua extensão, isto é, qual seria o seu enraizamento nestas sociedades?
No Brasil, sabemos do que se trata: silêncio ou mesmo cumplicidade (no seu mais estrito sentido) por parte das chamadas “grandes mídias”, ações ilegais e criminosas por parte de empresários e a res publica nacional se tornando um grande empreendimento por parte de políticos de quase todos os partidos e dos mais variados espectros ideológicos. E esta última expressão, a saber, “ideologia”, deve ser vista com certo cuidado. Mas tudo isto já sabemos, conhecemos, do berço à tumba, a qualidade da nossa élite (e de novo temos uma expressão que deve ser usada com cuidado e precações). Voltando à pergunta aludida acima: como se dá este processo em outros países?
Como exemplo usarei um país cuja realidade política conheço relativamente bem, a Bélgica, e a nossa escolha recai neste pequeno país porque a sua realidade é fantasiada por muitos brasileiros. Ora, se a Bélgica é, de fato, um pequeno – e jovem – país no Norte da Europa, não é, certamente, pacífico e próspero como se costuma imaginar. Recentemente, um escândalo ético e financeiro emergiu e abalou o país: o chamado escândalo Publifin, envolvendo administradores e políticos. E do que tratar-se-ia, então? A citada empresa é uma “intercomunal”, isto é, uma empresa criada por diversas comunas (ou cidades) com o objetivo de administrar diversas atividades de interesse comum, que, no caso desta empresa, eram, entre outras, “a energia, a telecomunicação e as mídias” (1) E como a lei belga proíbe que um político em atividade exerça de maneira cumulativa um cargo – por exemplo, o de prefeito – e um cargo de direção em uma intercomunal, criou-se um “jeitinho belga”:
“Na realidade, a intercomunal Publifin praticamente não existia. Nos fatos, a sua filial privada Nethys – empresa tentacular – se encarregava de todos os aspectos operacionais. E entre as duas as regras de transparência e gestão são bem diferentes. Um prefeito não pode dirigir uma intercomunal, mas há um vazio jurídico em relação às empresas privadas. Resultado: no caso de Publifin, Stephane Moureau (Partido Socialista) – CEO de Nethys – aproveitou esta falha para ficar na sua direção, e quando ele era prefeito da comuna de Ans” (2).
Estratagema bem conhecido por nós: leis falhas – ou omissas – e políticos interessados em usá-las em interesse próprio e não no interesse comum, e é este, justamente, o caso de Moureau, uma vez que ele recebia pelo exercício da função na intercomunal. E qual seria o montante do pró-labore (uso irônico da expressão) percebido? “Políticos eleitos [...] eram pagos por até 500 Euros por minuto [isto mesmo, você leu corretamente!...] para reuniões das quais eles não participavam: no fim de 2016, esta revelação caiu como uma bomba no mundo político valão” (3).
Ora, seria exatamente isto o que muitos políticos no Brasil fazem: recebem valores astronômicos por um trabalho não realizado. Mas, devemos nos perguntar: se não há dúvida de que o comportamento é antiético, os valores percebidos – indevidamente – seriam, de fato, astronômicos?
“Isto [500 Euros por minuto] equivale a montantes entre 1.340 e 2.871 Euros brutos por mês para reuniões que Le Vif [revista semanal belga] qualifica de ‘inúteis’. Cúmulo do absurdo: um eleito recebendo mais de 20.000 Euros brutos em três anos... E sem participar de uma única reunião” (4).
Se a jornalista conhecesse a realidade política brasileira ela iria, certamente, relativizar o tal “cúmulo do absurdo”... E na esteira do escândalo algumas carreiras políticas acabaram (definitivamente), ministros foram obrigados a se demitir, coalisões foram desfeitas. Flagrado em um escândalo semelhante, o ex-prefeito de Bruxelas, Yvan Mayer, renunciou a qualquer participação na vida pública:
“O ex-prefeito da cidade de Bruxelas não participará da vida política, afirmou ele quarta-feira à noite, após a sua longa audiência diante da comissão de inquérito sobre a gestão do Samusocial [outra intercomunal], na qual ele defendeu o trabalho de associação na ajuda aos sem-teto da capital, em todos os seus níveis. O antigo socialista já havia sido obrigado a se desfilhar do PS no final de junho” (5).
O que pode parecer aos olhos anestesiados de um brasileiro algo desimportante e até mesquinho – uma vez que por aqui qualquer conta pequena tem pelos menos sete dígitos – não foi assim percebido pela sociedade belga, que tratou parte da sua classe política de “máfia”. Talvez os políticos belgas – assim como os seus eleitores – devessem conhecer a realidade desta triste região dos trópicos para aprender a relativizar um pouco... Ou não seria, justamente, o contrário?
notas
1
DULCZWSKI, Alice. Vous n'avez pas tout compris à l'affaire Publifin? On fait le point. RTBF, Bruxelas, 05 fev. 2017 <https://www.rtbf.be/info/belgique/detail_vous-n-avez-pas-tout-compris-a-l-affaire-publifin-on-fait-le-point?id=9521035>. Tradução o português do autor. Acessado em 22 de Agosto de 2017.
2
Idem, ibidem.
3
Idem, ibidem.
4
Idem, ibidem.
5
RTBF + BELGA. Scandale Samusocial: Yvan Mayeur annonce son retrait de la vie politique. RTBF, Bruxelas, 20 jul. 2017 <https://www.rtbf.be/info/belgique/detail_scandale-samusocial-yvan-mayeur-annonce-son-retrait-de-la-vie-politique?id=9664222>. Tradução o português do autor. Acessado em 22 de Agosto de 2017.
sobre o autor
Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima é arquiteto e urbanista graduado pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Especialista em Filosofia Contemporânea pela UFES, Mestre em Estudos Literários pela UFES, Doutor em História e Teoria da Arquitetura e Urbanismo pela FAU USP e Estágio Pós-Doutoral pela FAU USP.