O contexto
O prefeito paulistano João Doria, em vídeo publicado nesse último sábado, repete em tom paternalista, muitas e muitas vezes: "Tudo tem limite!", ao referir-se à suposta ilegalidade da performance ocorrida na abertura do 35° Panorama do MAM-SP.
A carta
Sim, caro prefeito, tudo tem limite, em especial a irresponsabilidade que você assume ao inflamar um debate sem conhecimento de causa e criminalizar uma expressão artística legítima. Veja, se os sentidos da arte são múltiplos e disputáveis e se todos os seres humanos têm direito à interpretação subjetiva das obras, não se pode nem se deve impedir a mais variada gama de leituras – sejam as vindas de especialistas, sejam as vindas de quem tem pouca ou nenhuma familiaridade com a área. Esse é um jogo aberto, no qual as instituições de arte exercem um trabalho contínuo de ampliação de acesso, informação, debate e questionamento. Agora, o prefeito da cidade ganha automaticamente o dever de se informar com profundidade e amparado por profissionais. Não se trata de um adolescente a desabafar nas redes sociais, ainda que existam (maus) exemplos nesse sentido.
O cerne de seu argumento está em dizer que a performance La Bête constitui uma “cena libidinosa, que estimula uma relação artificial condenada e absolutamente imprópria”. É isso que muita gente está dizendo, mas será que é verdade? Será que isso se sustenta, se você olhar a performance em seu contexto original e após ouvir a opinião dos especialistas? Diversos dos mais importantes museus e instituições de arte no país declararam seu apoio ao MAM-SP, dezenas ou centenas de profissionais da área têm feito o mesmo, será que não é sua obrigação duvidar da sua primeira impressão? Se uma ponte parecesse estar com suas fundações fragilizadas, você decidiria por interditá-la ou não sem ouvir diversos engenheiros? Se houvesse consenso na comunidade médica e científica sobre as melhores abordagens para a população drogadicta, você ignoraria isso por conta de uma opinião pessoal? Bom, melhor mudar de assunto.
Deixo aqui minha opinião profissional, como curador e pesquisador de arte contemporânea: não, a ação do artista Wagner Schwartz, não constitui cena libidinosa. Tratou-se de uma ação em recinto fechado, amplamente iluminada, cuja nudez fora informada aos visitantes, à vista de centenas de pessoas, na qual nenhum gesto erótico ou metáfora sexual foi planejado ou ocorrido. Para uma parte da performance, o corpo nu do artista havia sido treinado para dobrar-se de acordo com a interação do público que voluntariamente entrasse no perímetro designado para a ação. Como na obra de Lygia Clark que inspirou a performance, os participadores poderiam se surpreender com os limites e possibilidades de posicionamento da obra-corpo; o artista, em contrapartida, atuaria como corpo-obra, não esboçaria reações ou emoções, muito menos provocaria atitudes libidinosas.
Alguém poderia dizer que, mesmo sendo este o roteiro, o artista poderia ter intenções ocultas. Talvez, se a interação acontecesse em lugar isolado, escuro e fechado, mas nunca no contexto da exposição, cercado por inúmeros olhos, inclusive de profissionais responsáveis e atentos. Tudo que aconteceu teve muitos testemunhos ao vivo e foi amplamente documentado.
Portanto, resta a segunda parte de seu juízo, de que a cena em que uma garota adentrou essa área e tocou o tornozelo, mão e pé do artista “estimula uma relação artificial condenada e absolutamente imprópria”. Não, caro prefeito, não é assim. Ver um corpo adulto nu sem qualquer atitude erótica ou signo de desejo sexual e uma criança vestida e igualmente desprovida de qualquer postura libidinosa não constitui um estímulo à pedofilia. Não houve pornografia, tampouco sexo ou coerção. Não houve qualquer estímulo para tanto. Um trecho de registro em vídeo foi muitas vezes reproduzido, descontextualizado e acompanhado das mais agressivas palavras de intolerância, mas a performance experimentada nada teve nesse sentido – e há centenas de testemunhas para assim confirmar.
Em um mundo melhor que este, o senhor prefeito poderia seguir discordando desta interpretação, mas procuraria ouvir muitos outros colegas, com as mais variadas formações e atuações. Acredito que se assim o fizesse, poderia até seguir incomodado com a obra, mas não repetiria os argumentos que utilizou de forma tão leviana e preocupante – porque pode abastecer ainda mais a fogueira da intolerância, do medo e do obscurantismo: estimular uma reação violenta, coercitiva e absolutamente imprópria contra profissionais desse e de outros museus e espaços de arte.
Há limites, senhor, há limites.
sobre o autor
Paulo Miyada é arquiteto e urbanista pela FAU USP. Foi assistente de curadoria da 29ª Bienal de São Paulo e curador do programa Rumos do Itaú Cultural 2011-2012. Atualmente coordena o Núcleo de pesquisa e curadoria do Instituto Tomie Ohtake.
biblioteca tempos temerários
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