I
Urubus e sabiás
Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em que os bichos falavam ...
Os urubus, aves por natureza becadas, mas sem grandes dotes para o canto, decidiram que, mesmo contra a natureza, eles haveriam de se tornar grandes cantores. E para isto fundaram escolas e importaram professores, gargarejaram dó-ré-mi-fá, mandaram imprimir diplomas, e fizeram competições entre si, para ver quais deles seriam os mais importantes e teriam a permissão de mandar nos outros. Foi assim que eles organizaram concursos e se deram nomes pomposos, e o sonho de cada urubuzinho, instrutor em início de carreira, era se tornar um respeitável urubu titular, a quem todos chamavam por Vossa Excelência. Tudo ia muito bem até que a doce tranqüilidade da hierarquia dos urubus foi estremecida. A floresta foi invadida por bandos de pintassilgos tagarelas, que brincavam com os canários e faziam serenatas com os sabiás...
Os velhos urubus entortaram o bico, o rancor encrespou a testa, e eles convocaram pintassilgos, sabiás e canários para um inquérito.
– Onde estão os documentos dos seus concursos?
E as pobres aves se olharam perplexas, porque nunca haviam imaginado que tais coisas houvessem. Não haviam passado por escolas de canto, o canto nascera com elas.
E nunca apresentaram um diploma para provar que sabiam cantar, mas cantavam, simplesmente...
– Não, assim não pode ser. Cantar sem a titulação devida é um desrespeito à ordem.
E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta os passarozinhos que cantavam sem alvarás ...
MORAL: Em terra de urubus diplomados não se ouve canto de sabiá (1).
II
Inicialmente gostaria de explicar a escolha do título e a inclusão na íntegra do conto de Rubem Alves (1). Mesmo intuindo que o título parecerá óbvio com o transcorrer da leitura do texto, penso que sua inclusão seja ilustrativa dos atuais dilemas da pesquisa em arquitetura, da pretendida indissociabilidade entre ensino-pesquisa-extensão e da implantação do Sistema Nacional de Pós-graduação no Brasil. Já a palavra Sucupira, tem um duplo propósito: faz referência à Plataforma Sucupira e expande o uso da palavra tupi suku'pira – casca e semente de árvores da família das fabáceas, utilizadas pelos indígenas por suas propriedades anti-inflamatórias, antibióticas, antioxidantes, anestésicas e anticarcinogênicas. A exemplo da suku'pira tenho a esperança de que sua leitura produza uma reação capaz de sanar as inflamações que assolam a produção de conhecimento em arquitetura, como a falta de criatividade ou de originalidade, impessoalidade e mesmice.
Me inspirei em Ronald Arendt (2) para escrever um texto que não pretende desqualificar o sistema Capes de avaliação e seu modelo produtivista. Como Arendt, compartilho o desconforto com os efeitos e cobranças de um modelo que divide programas e autores em “grupos mais ou menos produtivos"; que pensa "a produção dos programas de pós-graduação de uma forma global, maior, holística”; que avalia a produção dos programas a partir de um conjunto de critérios externos globais. Por conta disso os programas cobram mais produtividade de seus docentes, que precisam publicar artigos, livros e capítulos de acordo com a classificação da base Qualis, enquanto os docentes são divididos em função de uma média anual especificada em grupos mais ou menos produtivos: quem não atinge a meta anual de produtividade passa a colaborador, pesquisador ou se desliga dos programas para não prejudicá-los.
A pesquisa dita científica naturaliza um modelo cuja universalidade desconsidera as especificidades, subjetividades e complexidades características do pensamento das ciências humanas, sociais e das artes. Penso que, por combinar empatia, criatividade, razão e explorar soluções simultâneas, a avaliação nessas áreas deveria se ocupar de questões “não-científicas” como singularidade, criatividade e qualidade da reflexão. No caso da arquitetura a dificuldade de ajustar o pensamento dos arquitetos aos padrões de raciocínio da comunidade científica é evidente. A exemplo da exigência dos alvarás para cantar na floresta, a avaliação da produção em arquitetura praticamente expulsou a atividade do projeto, um problema de natureza maliciosa que se resume àquilo que um projetista concebe que ele seja. Em lugar do “canto dos sabiás” a avaliação enfatiza os alvarás de quem pode cantar na floresta do conhecimento.
Em função disso, a produção acadêmica em arquitetura tem se ocupado com o debate sobre o que é ou que pode ser aceito como científico. Segundo Fernando Fuão (3), a preocupação com a cientificidade também tem contribuído para afastar a produção da pesquisa em arquitetura das universidades públicas de seus compromissos éticos com os diversos segmentos daquilo que se convencionou chamar de "sociedade brasileira".
Tudo indica que os senhores da floresta da produção de conhecimento em arquitetura desconhecem que a ciência é apenas uma das tantas formas que utilizamos para explicar nosso estar no mundo; que ela não é, necessariamente, a melhor ou a mais certa; que eles desconsideram o alerta de Vilanova Artigas (4) sobre os riscos de se confundir os métodos próprios da prática da arquitetura com os métodos da ciência ou da tecnologia. Diferentemente do discurso “científico”, o discurso da arquitetura deve combinar a materialidade dos edifícios e lugares com a humanidade de quem os habita. Ao combinar ciência, tecnologia e subjetividade o conhecimento em arquitetura comporta materialidades e qualidades que, por emocionarem e provocarem a imaginação das pessoas, não podem ser fielmente interpretadas a partir de teorias e conceitos. Eles também desconhecem a sabedoria de Manuel de Barros – “a ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá, mas não pode medir seus encantos” (5) – e de Rubem Alves – que compara a Confraria da Ciência com a dos Pescadores que Tecem as Redes de Pesca. Assim como as redes de pesca não se prestavam para pescar todos os tipos de peixe e deixavam escapar os peixes menores – que exigiam tipos mais sutis e delicados de redes com malhas mais finas – somente o que é retido pela rede da confraria dos cientistas é considerado científico. Se a ciência não consegue dar conta das qualidades do que é produzido em arquitetura, parece óbvio que ela não deve servir como seu único instrumento de avaliação, sob pena de condenar a floresta da produção do conhecimento da área a seguir desabitada de sabiás, pintassilgos e desprovida dos seus [en]cantos.
A avaliação da produção em arquitetura deveria ser capaz de mobilizar aquilo que Arendt caracteriza como “tipos particulares de subjetividade, mais emocionais do que razoáveis”, experiências que estão distantes das nossas universidades. Apesar dos acadêmicos terem emoções, seu registro nos textos é incerto: sentimentos são encaminhados à vida privada, ao esporte, ao consumo, à novela, à arte, mas não explicitamos nossas emoções nos trabalhos acadêmicos. A exemplo de Arendt penso que a produção do conhecimento deveria enfatizar os efeitos, os diálogos, os cenários, as encenações; que, em lugar de buscar a homogeneidade, os textos e práticas acadêmicos deveriam expressar com a maior riqueza e rigor os encantos da heterogeneidade, subjetividade e humanidade da produção de conhecimento em arquitetura; deveriam expressar a multiplicidade dos pontos de vista de uma experiência que é distribuída, cujas perspectivas e processos não se encaixam num todo coerente; deveriam dar conta de cada forma particular de experiência, da importância de mover e trabalhar outras práticas de compreensão. A exemplo de John Law (6), a incerteza do contexto acadêmico contemporâneo me leva a pensar que aquilo que conhecemos é menos importante do que os processos de compreensão; que o processo de avaliação da produção deveria ser capaz de contemplar as sensibilidades em relação àquilo que não se ajusta ou que não pode ser reduzido às homogeneidades das práticas padronizadas de conhecimento.
A exemplo dos poderes da cura atribuídos à Sucupira, penso que, para enfrentar uma previsível dificuldade ou resistência dos adeptos do modelo de avaliação produtivista, será necessário acolher outros modelos que possibilitem superar a simples proliferação de textos e artigos. Por tudo isso espero que este texto contribua para fazer emergir um movimento em direção à aceitação de coexistência do modelo atual com outros modelos que utilizem estratégias e critérios de avaliação que privilegiem o “canto dos sabiás” ao saber dos urubus diplomados na floresta da produção de conhecimento em arquitetura.
notas
1
ALVES, Rubem. Urubus e sabiás. Estórias de quem gosta de ensinar. São Paulo, Cortez, 1984, p. 61-62.
2
ARENDT, Ronald. Carta aos prezados colegas da comissão de avaliação dos Programas de pós-graduação em psicologia da capes. In BERNARDES, Anita Guazzelli; TAVARES, Gilead Marchezi; MORAES, Marcia (Org.). Cartas para pensar políticas de pesquisa em psicologia. Vitória, Edufes, 2014, p. 107-115. Disponível em <http://repositorio.ufes.br/bitstream/10/1630/1/Cartas%20para%20pensar%20politicas%20de%20pesquisa%20em%20psicologia.pdf>.
3
FUÃO, Fernando Freitas. A Universidade incondicional. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 073.06, Vitruvius, jun. 2006 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.073/348>.
4
ARTIGAS, Vilanova. Caminhos da arquitetura. São Paulo, LECH, 1981, p. 95-100.
5
BARROS, Manuel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro, Record, 1996.
6
LAW, John. Assembling the Baroque. Centre for Research on Socio-Cultural Change, Series Working Paper n. 109, Milton Keynes, The Open University, dez. 2011 <http://hummedia.manchester.ac.uk/institutes/cresc/workingpapers/wp109.pdf>.
sobre o autor
Paulo Afonso Rheingantz é arquiteto (1976), doutor em engenharia de produção (UFRJ, 2000) com pós-doutorado na California Polytechnic State University, San Luis Obispo (2008), pesquisador 1D/CNPq. Pesquisador Visitante Nacional Sênior do Programa de Pós-graduação em Arquitetura da Universidade Federal de Pelotas e Professor Associado aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com atuação no Programa de Pós-graduação em Arquitetura.