No sábado, 2 de junho de 2018, perdemos uma grande arquiteta. Mais que isso, uma grande personalidade da cultura brasileira.
Briane Panitz Bicca elaborou, ao longo de sua vida profissional, grande arcabouço de compreensão do patrimônio cultural brasileiro, sobretudo a gênese da compreensão do fato cultural Brasília. Transitava com leveza e sabedoria na atuação prática em diversas instâncias, do local ao internacional, do burocrático à política institucional, da luta corporativa à luta política de sentido mais amplo. É o que demonstra sua recente atuação na prefeitura de Porto Alegre como responsável pelo PAC-Cidades Históricas (1), e pelos postos de conselheira ocupados no Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB e no Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAU.
Graduada em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio Grande Sul – UFRGS em 1969, doutorou-se em planejamento urbano pela Universidade de Grenoble, França, em 1979. Também se especializou em Conservação Arquitetônica, no ICCROM (2) de Roma, em 1989 e, em seguida, realizou o pós-doutorado em Conservação do Patrimônio Histórico na Palais Chaillot de Paris em 1990.
No serviço público, trabalhou como técnica em planejamento no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan (de 1979 a 1992), onde coordenou o GT Brasília (1981-1987), grupo de trabalho interinstitucional que articulou o então Sphan/ProMemória (3) ao Governo do Distrito Federal e à Universidade de Brasília na elaboração do dossiê de candidatura de Brasília a Patrimônio da Humanidade na Unesco.
Ao lado de Aloísio Magalhães, então Secretário Nacional de Cultura, idealizador de Brasília-Patrimônio, e do incansável professor Augusto da Silva Telles, presidente do Sphan (), o papel da arquiteta Briane Bicca foi decisivo para o reconhecimento mundial do valor histórico e cultural da nova capital brasileira. Continuou sua brilhante trajetória por permanente empenho na construção da consciência de nossa memória cultural. Isto se expressou no período em que exerceu a Secretaria da Unesco em Brasília, posteriormente, assumindo o Programa Monumenta, e, mais recentemente retornou com os esforços e empenhos pela preservação e compreensão de Brasília como patrimônio cultural.
Já em fins da primeira década de 2000, ela integrou a consultoria contratada para desenvolvimento do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília e, neste ano, teria sido uma dos membros do júri para o Concurso do Masterplan da Orla do Lago Paranoá (4). Lamentavelmente, a enfermidade que a acometeu impediu sua participação no certame. Reiterou, da forma passional como lhe era particular, seu pesar por não participar desse projeto que ela classificava como modificador da história da cidade.
Tive a honra de participar por duas vezes do Júri do Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade ao lado de Briane. Seu poder conciliatório advinha da simplicidade e clareza de sua argumentação. Sempre com os dois pés no chão, conhecedora do realismo local e político em que a cultura brasileira é diariamente produzida, mas com visão mirando ao longe, buscando constante relação com a contemporaneidade e os debates mais atuais da sociedade.
Além de sua atualização em relação a diversas agendas contemporâneas, pessoalmente me encantava o nível de informação e a abertura que ela demonstrava ao novo. Demonstrava que entendia cultura em sentido antropológico, e também como processo histórico e político. Menos como produto artístico pronto e acabado, embora sensível a esse aspecto também. Não me esqueço de um e-mail caloroso e afetuoso que ela me enviou notando que Brasília dispunha de uma “diretoria de mobilidade a pé” para estabelecer políticas urbanas para os pedestres. Em suma, percebia tudo que estava ao redor no seu campo de conhecimento e para muito além dele.
À família e aos amigos, um abraço e que o espírito alegre, culto e amoroso de Briane nos sirva de inspiração para continuar na luta.
nota
NA – A redação do texto contou com o auxílio das informações biográficas prestadas pela nota de pesar do IAB-RS e pela inestimável contribuição de sua amiga-irmã Maria Elaine Kohlsdorf.
1
PAC-Cidades Históricas – o Programa de Aceleração do Crescimento foi criado em 2007 pelo governo federal, com coordenação do Ministério do Planejamento e voltado para planejamento e execução de grandes obras de infraestrutura social, urbana, logística e energética do país. Em 2013 o Ministério do Planejamento autorizou a criação de uma linha destinada exclusivamente aos sítios históricos urbanos protegidos pelo Iphan, dando origem ao PAC Cidades Históricas.
2
ICCROM – International Centre for the Study of the Preservation and Restoration of Cultural Property é uma organização intergovernamental que trabalha a serviço dos Estados membros para promover a conservação de todas as formas de patrimônio cultural em todas as regiões do mundo.
3
A Fundação Nacional Pró-Memória (1979-1990) funcionou ao lado da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan, formando com ela uma organização dual, que visou dar maior dinamismo às políticas culturais voltadas para a preservação do patrimônio cultural.
4
Concurso do Masterplan da Orla do Lago Paranoá foi promovido pela Secretaria de Estado de Gestão do Território e Habitação do Distrito Federal de dezembro de 2017 a 17 de maio de 2018. O objetivo do concurso era determinar a forma de ocupação e a configuração da paisagem da orla, suas conexões com o entorno próximo, condições de mobilidade, mobiliário urbano, identidade visual, além de apontar possibilidades de utilização do espelho d’água.
sobre o autor
Thiago de Andrade é arquiteto e urbanista formado pela FAU-UnB. Desde 2015 atua como Secretário de Estado na Secretaria de Gestão do Território e Habitação do Governo do Distrito Federal.