Hoje, apareceu na minha timeline este desenho do Prof. Haroldo Gallo (meu primeiro professor no Mackenzie e, mais de dez anos depois, meu primeiro parceiro como professor de projeto arquitetônico) de um recorte da cúpula de Brunelleschi para a Igreja de Santa Maria del Fiori, em Florença. Quando vi o desenho, apesar de reconhecer sua inequívoca beleza, fui acometido por um sentimento estranho, quase nostálgico.
Esse desenho identifica-se por uma característica em extinção (para não dizer extinta) mas que já teve seus anos de ouro. Refiro-me ao saudoso “traço tremido”.
Os tempos de glória do traço tremido foram as três últimas décadas do século passado. Essa oscilação gráfica chegava a ser imitada. Ensaiávamos o tremidinho “chupando” no papel manteiga o desenho previamente feito à régua. Assim, o traço ficava tremido, mas não ficava torto (fica a dica). O tremor era deliberadamente proposital. Não foram poucas as vezes que ouvíamos: “Faça o traço tremido para que seu desenho pareça com o de um arquiteto. O tremido deixa o desenho com cara de croqui”.
Me formei na década de 1990, o "canto dos cisnes" do traço tremido. Esse tremor nasce naturalmente da feitura lenta da linha (faça o teste). As grandes referências do traço tremido eram arquitetos como Mario Botta, Aldo Rossi, Michael Graves, James Stirling e, no ambiente interno, o próprio Gallo, Hector Vigliecca e o então jovenzinho professor, Mario Figueroa (esses dois últimos, não por acaso, estrangeiros).
São vários os fatores que podem explicar a morte do traço tremido. Um deles é a morte do desenho em si, claro. Mas, mais do que isso, o traço tremido, lento, era a linguagem gráfica que comunicava uma arquitetura e um fazer da arquitetura específicos que parece já não existir mais.
O traço tremido não é a única característica comum entre Botta, Rossi, Graves, Stirling, Vigliecca, Gallo e Figueroa. O traço tremido era a linha que preenchia e definia o contorno de uma arquitetura alternativa à continuidade da linha moderna de Niemeyer, Artigas e Mendes da Rocha (seria impensável um Niemeyer, um Artigas ou um Mendes da Rocha com traço tremidinho, não?).
O traço tremido depõe contra a precisão e a extensão linear inerente ao perfil da forma moderna. Nesses termos, o traço tremido é a expressão de uma temporalidade gráfica, perceptiva e projetual que carrega consigo determinados artifícios históricos da arquitetura e do projeto, tais como volumetria, composição, relação entre cheios vazios, relação entre parte e todo (o desenho do todo resulta do desenho das partes e o traço tremido desenha o projeto parte por parte), adição, subtração, materialidade local, disciplina programática e apreço pelo detalhe em si mesmo. Ou seja, o traço tremido traz à tona tudo aquilo que o moderno julgou superar: a arquitetura "figurativa" e histórica.
As inaugurações do Guggenheim de Bilbao e do MuBE, nas mesma época (metade da década de 1990) apontaram para duas alternativas diametralmente opostas ao traço tremido e, consequentemente, à linguagem daquela arquitetura concebida e representada pela linha trêmula: o gesto quase histriônico de Gehry e a linha pretensamente impessoal de Mendes da Rocha, que ganhou maior interesse a partir do MuBE, assim como a própria obra do arquiteto.
O traço tremido é a imagem-síntese dos meus tempos de faculdade. Saudades desses tempos. Saudades do traço tremido como resistência.
nota
NE – texto publicado originalmente na página facebook do autor.
sobre o autor
Rodrigo Queiroz é arquiteto (FAU Mackenzie, 1998), licenciado em Artes (Febasp, 2001), mestre (ECAUSP, 2003), doutor (FAUUSP, 2007) e professor livre-docente do Departamento de Projeto da FAU USP. Curador de exposições de arquitetura moderna, tais como “Ibirapuera: modernidades sobrepostas” (Oca, 2014/2015), “Le Corbusier, América do Sul, 1929” (CEUMA, 2012), “Brasília: an utopia come true”, (Trienal de Milão, 2010) e “Coleção Niemeyer” (MACUSP, 2007/2008).