Quando comecei a conhecer a Rocinha, ficava desanimado diante dos enormes problemas que teriam de ser enfrentados para dar mínimas condições de habitabilidade à população local. Nessa época, muito anterior ao início do Plano Diretor Sócio Espacial, eu costumava andar com alguns moradores, nos fins de semana, pelo labirinto de becos em busca de espaços que pudessem ser transformados em locais de reunião da população.
Ao passar pelos becos, meus olhos só viam os aspectos negativos que, sem dúvida, eram muitos. O cheiro de esgoto agravado pela falta de ventilação e a escuridão de becos que viravam verdadeiros tuneis, como na antiga Rua 4, faziam com que eu medisse a favela a partir do que nela faltava.
Com o início do Plano Diretor, em 2006, mudamos nosso escritório para dentro da Rocinha e minhas incursões de final de semana passaram a ser diárias e graças a imersão no dia a dia da favela meus olhos se abriram para o que a Rocinha tinha de positivo.
Os becos, julgados a princípio com tanta severidade, à medida que se tornavam conhecidos adquiriam nomes e nos revelavam, pouco a pouco, aspectos surpreendentes do ponto de vista urbanístico, como a notável articulação entre eles, acomodados às curvas de nível e as enormes escadarias que desafiavam a topografia. O labirinto transformava-se em um tecido urbano capaz de cortar distâncias e oferecer aos moradores uma infinidade de alternativas de circulação no interior da favela.
O mau cheiro decorrente da ausência de saneamento não era um problema específico do sistema viário e sim, à inoperância e do descanso de governantes que se mantinham afastados das favelas, a tal ponto, que estas nem mesmo faziam parte da cartografia oficial da cidade. Por sua vez, a falta de iluminação e ventilação não seriam difíceis de evitar, caso houvesse algum tipo de orientação e fiscalização eficientes da Prefeitura.
A trama viária da Rocinha, formada pelo binômio improvável de becos e escadarias, poderia ser potencializada pela implantação de um sistema de planos inclinados, articulados ao tecido viário existente. Essa era a proposta do Plano Diretor, mas, infelizmente o governo só queria saber de teleféricos midiáticos (1) e caríssimos, como o do Alemão, hoje desativado por falta de manutenção.
A forma com que os becos da Rocinha se organizam funcionalmente, mesclando habitações com comércio e serviços, fazendo com que os transeuntes, nos seus deslocamentos diários, fossem atraídos ora por um salão de beleza, por uma oficina de costura, ora por uma quitanda. Atividades que davam vida aos becos e serviram-me de modelo para projetar, anos mais tarde, vários protótipos de Habitações de Interesse Social, com corredores que igualmente davam acesso as moradias e a pequenos estabelecimentos comerciais e de serviços.
Com esse relato, quero chamar a atenção do caríssimo leitor para uma outra transformação que está ocorrendo nas favelas cariocas, diante da qual muitos de nós fechamos os olhos. Não se trata do crescimento populacional e territorial das favelas, abordado em meu artigo anterior (2), na verdade passa longe desse assunto que vem sendo explorado pela mídia nas últimas semanas.
Falo da transformação que começou anos atrás e somente agora produz os primeiros resultados palpáveis. Revolução que talvez tenha-se iniciado com a o empoderamento de lideranças formadas nas associações de moradores, com a chegada da internet nas Lan Houses que pipocavam nas favelas, talvez com os cursinhos de pré-vestibular comunitários, o fato é que, entre a população favelada, tem crescido o acesso à universidade e à pós-graduação, fatos que certamente estão por trás da explosão de mestres e doutores que estão se candidatando à deputados federais e estaduais, na próxima eleição, acompanhados por lideranças que, fora da universidade, adquiriram uma visão sofisticada da questão das favelas, expressa em discursos articulados lastreados por informação de qualidade e representatividade inquestionável.
notas
NA – Texto de divulgação do debate ocorrido entre membros das entidades Casa de Estudos Urbanos Casa, Estudos Urbanos e Coletivo Peneira, ocorrido no dia 17 de setembro de 2018 na Casa de Estudos Urbanos no Rio de Janeiro.
1
TOLEDO, Luiz Carlos. A Rocinha não precisa e não quer banho de loja, quer e merece muito mais! Drops, São Paulo, ano 18, n. 120.09, Vitruvius, set. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.120/6711>.
2
TOLEDO, Luiz Carlos. Crescimento das favelas cariocas, Shopping Chão, Indisciplinas Urbanísticas e Cidade Oculta, tudo junto e misturado. Minha Cidade, São Paulo, ano 19, n. 218.02, Vitruvius, set. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/19.218/7101>.
sobre o autor
Luiz Carlos Toledo, arquiteto, mestre e doutor pelo Proarq UFRJ, diretor da Mayerhofer & Toledo Arquitetura, autor do Plano Diretor Sócio-Espacial da Rocinha (2006) e diretor da Casa de Estudos Urbanos. Recebeu do IAB-RJ o título de Arquiteto do Ano em 2009.