No intervalo da aula fui ver o croqui desenhado no quadro negro. Constatei: o professor Antonio Carlos Sant’Anna havia preparado outra lousa memorável, fato que eu bem sei que ele repete de quando em quando ao longo das décadas de dedicada docência (1). Realmente a cena era espetacular: todo o campo retangular verde escuro estava preenchido com croquis, esquemas, diagramas e textos explicativos caprichosamente desenhados e escritos com giz. A aula do dia, que trataria do Plano Diretor Estratégico, havia sugerido ao colega exemplificar questões com o famoso edifício projetado no imediato segundo pós-guerra, depois de o arquiteto suíço-francês convencer o investidor sobre as vantagens da densificação habitacional.
Fotografei com o celular, coloquei uma das imagens na minha página do Facebook, tomei um café e fui dar minha aula. Três horas depois, após aula e conversa com alunos, encontro o colega na sala dos professores e comento que havia feito um experimento antropológico e que poderíamos ver juntos o resultado. Abri a página e nos deparamos com quinhentas curtidas e dezenas de comentários e compartilhamentos (2). A postagem bombou! Como Sant’Anna não se interessa pelo Facebook, precisei explicar o que havia acontecido, e ele ficou fascinado com os comentários de amigos, colegas, alunos e ex-alunos, muitos deles seus orientandos ao longo do tempo.
Depois do ocorrido, tentei entender o que havia ocorrido – ou o que estava ocorrendo, pois as curtidas, comentários e compartilhamentos prosseguiram durante a noite e no dia seguinte, passando ao largo dos algoritmos que hoje controlam a propagação de mensagens na rede social. Por usar a mídia como editor, tenho algumas noções sobre o que funciona (e confesso que sabia de antemão que funcionaria...) e o que não funciona, mesmo considerando que há boas chances de estar errado. No caso, além do croqui do corte da Unité, havia colocado o seguinte texto:
LE CORBUSIER A GIZ — o arquiteto Antonio Carlos Sant’Anna, em sua aula de hoje na FAU Mackenzie, explica a Unité de Marselha para seus alunos.
A caixa alta no título, que devemos sempre usar com comedimento em qualquer suporte de comunicação, destacava o nome célebre e sugeria o ato de desenhar ao vivo, um bom chamariz para se continuar a leitura. O corpo do texto, compacto e objetivo, sem qualquer qualificativo, explicava o fato em si, dando a ele um caráter corriqueiro, cotidiano, quase banal, o que era contrariado pelo desenho elaborado, preciso e bonito, impossível à maioria dos professores. O sucesso da postagem era inevitável!
Contudo, dei um passo além e me perguntei a minha motivação em fazer a divulgação tão de imediato, quando estava apressado e sem tempo. Me dei conta o quanto esse desenho me acompanhou ao longo dos anos, das décadas, o quanto eu próprio havia rabiscado o mesmo corte, em geral de forma imprecisa e até mesmo lamentável. Muitas vezes em aula e quase sempre em conversas com orientandos eu comentei o projeto de Le Corbusier, de 1947-1952, comparando-o a outros dois projetos: o Conjunto Residencial do Pedregulho no Rio de Janeiro, projetado e construído por Affonso Eduardo Reidy entre 1949 e 1952; e o complexo residencial Robin Hood Gardens, que o casal Alison e Peter Smithson idealizou e construiu em Londres no período de 1969 a 1972.
A tipologia das unidades e sua relação com o corredor de distribuição nos três projetos mantêm semelhanças e algumas flagrantes diferenças, que – em minha opinião – apontam para desenvolvimento e aprimoramento da invenção. Le Corbusier concebe um sistema engenhoso de apartamentos duplex ocupando três pavimentos, com corredor central no piso intermediário, que resulta em ventilação cruzada em todas unidades. Reidy, dispõe dois renques de duplex nos quatro pavimentos superiores do seu conjunto e opta por corredores externos no piso inferior de cada unidade, mantendo a ventilação cruzada em todas os apartamentos; o que se perde em área em relação à solução corbusiana – um corredor para cada dois pavimentos ao invés de um corredor para cada três pavimentos – se ganha na vista para a paisagem e iluminação natural nos longos corredores de distribuição; e o que se perde em complexidade no corte simplificado, se ganha na planta ao se conseguir fazer a curva do grande edifício mantendo o paralelismo das paredes internas (as paredes divisórias entre as unidades têm espessuras em forma de cunha, possibilitando a curvatura do conjunto). Por fim, os Smithson somam praticamente todas as qualidades das duas soluções anteriores e conseguem colocar um corredor externo – que eles chamam de “deck” – acessando duplex dispostos em três pavimentos!
A fortuna reservada a cada um dos projetos foi distinta e não cabe aqui comentar os motivos, que são de diversas ordens, inclusive alguns deles externos à questão específica da arquitetura como projeto e construção. Contudo, talvez seja possível arriscar dizer que a escala desmesurada do Robin Hood Gardens e sua estética brutalista excessivamente agressiva tenha conquistado mais adversários do que adeptos, abrindo espaço para sua demolição. Enquanto isso, apesar das adversidades atuais do exemplo brasileiro, que precisa de uma boa manutenção, o Conjunto Residencial do Pedregulho e a Unidade de Habitação de Marselha continuam a maravilhar com suas presenças na paisagem urbana os olhos de quem gosta da boa arquitetura.
notas
1
Conheci o arquiteto Antonio Carlos Sant’Anna na condição de seu aluno no final dos anos 1970. Alguns anos depois, Sant’Anna, sócio do escritório Rino Levi Arquitetos Associados, apoiou a produção do livro Rino Levi – arquitetura e cidade, situação que acabou estreitando nossa amizade. Após lecionar em diversas escolas, atualmente o docente está vinculado às Faculdades de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie (onde o fato narrado ocorreu) e da Universidade de São Paulo.
2
No momento em que encerro esse breve texto, a imagem conta com pouco mais de 1000 curtidas, 81 comentários e 121 compartilhamentos. Coube ao amigo Sergio Moacir Marques, de Porto Alegre, a milésima curtida por volta das 14h30 do dia 21 de setembro de 2018, praticamente 24 horas depois da postagem no Facebook.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.