Para além de bravatas populistas e chamadas sensacionalistas, sugiro discutir o Prêmio Pritzker desse ano, conferido a Yvonne Farrell e Shelley McNamara, do Grafton Architects (1), a partir da arquitetura. Essa talvez seja a melhor forma, aliás, de mostrar respeito tanto ao prêmio quanto às premiadas.
Após cobrir as últimas edições para a mídia brasileira e conhecer mais intimamente o funcionamento do prêmio e seu júri, acredito que a escolha desse ano foi motivada exclusivamente pela qualidade arquitetônica.
Gostaria de falar sobre dois tempos nos quais tive contato direto com a obra e pensamento do Farrell e McNamara.
Edifício da Universita Luigi Bocconi, 2008
Visitei pessoalmente uma de suas obras, o edifício da Universita Luigi Bocconi, em 2008, em Milão (2). Nesse projeto com muitos erros e alguns acertos, as arquitetas tendem para um desenho barroco, rebuscado, repleto de soluções de fachadas arbitrárias. As reentrâncias nas empenas procuram resolver um problema abstrato criado pela própria arquitetura – que compôs fachadas cegas voltadas para a rua. Fica por ali certo sabor amargo de fachadismo.
O edifício, nesse ponto, faz uma caricatura mal desenhada de Siza e Rossi ao dialogar forçosamente com a volumetria do entorno, sem precisão de composição e com certo ar de "cidade global". A obra acaba soando como uma conjunção-desconjuntada de diferentes partes e isso não parece se tratar, particularmente, de uma escolha deliberada das arquitetas, mas um resultado processual do projeto e sua organização do programa a partir de pressupostos arquitetônicos iniciais. A relação entre peso e delicadeza fica em um meio termo, de difícil compreensão visual.
Aponto, por outro lado, como qualidade, outros aspectos vinculados à implantação urbana, sobretudo uma bela janela em fita entre a calçada e o hall subterrâneo. Essa relação entre dois níveis, no qual o espaço público está elevado em relação ao espaço interno rebaixado cria uma surpreendente sensação espacial na divisão com o exterior. Também destaco a organização funcional de um programa complexo dentro de um lote urbano. Apesar de não ser algo inédito para a arquitetura, devemos, como arquitetos, reconhecer as dificuldades dessa empreitada e respeitá-la.
Com sua preocupação de criar um diálogo entre a cidade histórica e contemporânea, a Bocconi não se destaca como um exemplo muito melhor do que uma ou duas dezenas de prédios construídos na mesma época próximo a Bercy em Paris, os quais mal conseguimos nomear a autoria.
Como se trata de uma escola de economia, o projeto para a Bocconi permitiu ao Grafton Architects consolidar uma poderosa inserção no mundo de negócios e no sistema neoliberal europeu.
Não conheço a obra da dupla em Lima, na qual ouvi falar muitíssimo bem (University Campus UTEC Lima, 2015). Também desconheço “a transformação que elas estão fazendo na arquitetura irlandesa”, segundo pensadores ligados ao prêmio afirmaram. Fico obviamente curioso em ver de perto tanto esse projeto no Peru quanto as obras na Irlanda.
Curadoria da Exposição da Bienal de Veneza, 2018
Se o meu primeiro contato com a obra de Yvonne Farrell e Shelley McNamara teve altos e baixos, minha segunda experiência já foi mais problemática. A exposição curada por elas para a Bienal de Veneza em 2018 (3) estava “abaixo da crítica”. Com o tema genérico Freespace, a mostra soava como uma incompreensível e frágil justaposição de projetos espalhados caoticamente pelo Arsenale e pavilhão central do Giardini. Por mais que nos esforçássemos, parecia impossível entender os critérios curatoriais e arquitetônicos que guiaram a escolha das obras e suas relações com um infantil manifesto. Os poucos críticos que julgaram relevante escrever sobre a exposição (a Bienal de Veneza sempre atrai olhares de todo mundo por parte da crítica e a imprensa) apontaram também uma completa desconexão entre a arquitetura de Grafton e o manifesto-projeto curatorial.
Desde que comecei a ir e escrever sobre Veneza, esta foi a mais frágil exposição e, segundo conversei com visitantes frequentes mais antigos (em geral, outros jornalistas, críticos e arquitetos), foi possivelmente a pior exposição desde o início da mostra nos anos 1980. Ouvi também que essa edição havia abalado a imagem da Bienalle, afinal “não valeria a pena se deslocar a Veneza para ver isso”.
Fiquei, por fim, absolutamente chocado com o nível da expografia desenvolvida pelas arquitetas para os galpões do Arsenale, onde as janelas totalmente abertas, por exemplo, lavavam completamente todas as projeções de vídeo, demandando altos gastos desnecessários para o aluguel de equipamentos potentes. Em suma, uma Bienal constrangedora.
OK. Estamos falando de uma exposição e não de um edifício, no entanto, pelo que apurei para artigos sobre os últimos prêmios, os jurados crescentemente destacam a importância teoria/pensamento para a escolha. Nesse aspecto, Grafton demonstra significativa fraqueza.
As hesitações atuais no Pritzker
O Pritzker, com seu supercompetente júri, parece dar sinais de refletir, em suas últimas e oscilantes escolhas, o profundo desgaste e ausência de sentido da arquitetura contemporânea frente aos próprios pensadores da área pelo mundo. Se em 2018 e 2019, a instituição conferiu o prêmio a dois nomes de difícil questionamento, referenciais para a arquitetura do século 20 – Bakkrishna Doshi e Arata Isozaki, respectivamente; por outro lado, em 2016, 2017 e 2020, premiou três práticas – Alejandro Aravena, RCR, Grafton (4) – que pouco se destacam frente a centenas de outras pelo mundo ou que ainda precisariam gastar muito papel manteiga para justificar sua relevância histórica.
A linha e propósito do prêmio não parece mais totalmente clara. Trata-se de uma honraria referencial para o conjunto da obra e inovações ou para práticas controversas, em meio de carreira, e com relevâncias locais? Apesar dos prêmios para RCR e Grafton, não chegaram ao hall do Prizker alguns nomes absolutamente referenciais para o metiê arquitetônico contemporâneo internacional e com um conjunto de obras muito mais vasto tais como David Chipperfield e Lacaton & Vassal. Também ganharam pouca importância nos últimos anos arquitetos que tencionam radicalmente os limites da prática, como Diébédo Francis Kéré.
Entre 2006 e 2015, o Pritzker conseguiu ser constante e certeiro em suas premiações destacando nomes irrefutáveis como Kazuyo Sejima, Peter Zumthor, Richard Rogers e Paulo Mendes da Rocha (5). Como resultado, fortaleceu a imagem da instituição pelo mundo. Se olharmos para períodos anteriores, veremos que o prêmio deu também conta de boa parte das práticas relevantes que traduzissem para o grande público o significado da arquitetura. Aliás, esse ainda parece ser o ponto mais relevante de uma premiação como essa: trazer o debate do campo da arquitetura para o grande público. Nesse sentido, tenho sérias dúvidas de como a obra arquitetônica do Grafton Architects pode contribuir.
notas
1
The Pritzker Prize 2020 <https://www.pritzkerprize.com/laureates/2020>.
2
VITALE, Daniele. Edifício público e espaço urbano. A nova Bocconi em Milão, de Grafton Architects. Projetos, São Paulo, ano 11, n. 130.01, Vitruvius, out. 2011 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/11.130/3885>.
3
FIGUEIRA, Jorge. Uma bienal em freejazz. Passeio pela 16a Biennale di Architettura di Venezia. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 135.02, Vitruvius, jun. 2018 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.135/7001>.
4
Alejandro Aravena ganhou em 2016; Rafael Aranda, Carme Pigem & Ramon Vilalta, do RCR Arquitectes, ganharam em 2017. Ver: GONZÁLEZ ORTIZ, Humberto. Alejandro Aravena. Mis opiniones acerca de un Premio Priztker vacuo. Drops, São Paulo, año 17, n. 106.01, Vitruvius, jul. 2016 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.106/6089>; KOGAN, Gabriel. Pritzker e a crise da arquitetura. Resenhas Online, São Paulo, ano 16, n. 183.01, Vitruvius, mar. 2017 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/17.183/6444>; SGUIZZARDI, Silvio; COELHO JR, Marcio Novaes. Pritzker a seis mãos. Sobre a obra dos arquitetos Rafael Aranda, Carme Pigem e Ramon Vilalta. Projetos, São Paulo, ano 17, n. 196.02, Vitruvius, abr. 2017 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/17.196/6509>.
5
A série de ganhadores nessa década é a seguinte: Paulo Mendes da Rocha (2006), Richard Rogers (2007), Jean Nouvel (2008), Peter Zumthor (2009), Kazuyo Sejima & Ryue Nishizawa (2010), Eduardo Souto de Moura (2011), Wang Shu (2012), Toyo Ito (2013), Shigeru Ban (2014) e Frei Otto (2015). Ver: DAL CO, Francesco. Paulo Mendes da Rocha – Pritzker Prize 2006. Arquitextos, São Paulo, ano 06, n. 071.00, Vitruvius, abr. 2006 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.071/358>; MASSAD, Fredy; GUERRERO YESTE, Alicia. Richard Rogers. Entrevista, São Paulo, ano 08, n. 030.01, Vitruvius, abr. 2007 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/08.030/3296/pt_BR>; MASSAD, Fredy; GUERRERO YESTE, Alicia. Operação triunfo. Jean Nouvel ganha o Prêmio Pritzker 2008. Drops, São Paulo, ano 08, n. 023.01, Vitruvius, maio 2008 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/08.023/1755>; MASSAD, Fredy; GUERRERO YESTE, Alicia. À margem de Zumthor. Drops, São Paulo, ano 09, n. 027.03, Vitruvius, maio 2009 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/09.027/1793/pt_BR>; CAMPOS, Márcio Correia. O Pritzker vai para Shigeru Ban. Reconhecimento da nova modernidade. Drops, São Paulo, ano 14, n. 078.06, Vitruvius, mar. 2014 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.078/5107>; SERAPIÃO, Fernando. Wang Shu, prêmio Pritzker 2012. Trabalho de arquiteto chinês é colírio aos olhos ocidentais. Drops, São Paulo, ano 12, n. 054.01, Vitruvius, mar. 2012 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/12.054/4187>.
sobre o autor
Gabriel Kogan, arquiteto e professor na Escola da Cidade de teoria da arquitetura contemporânea. Desenvolve doutorado na FAU USP.