A primeira vez que eu o vi foi logo na minha primeira tentativa minimamente parecida com trabalhar com arte contemporânea. Era 2004 e Agnaldo Farias, que era meu professor na FAU-USP, inventou que podia ser bom para mim passar uns dias dando uma mão na montagem de sua exposição no Instituto Tomie Ohtake. Claro que, sem nenhuma experiência, eu equivalia a um cone ou um unifila estacionado na montagem, mas o Tobias, que coordenava a instalação, parecia achar graça da minha presença e passava algumas coisas para eu fazer. Uma delas foi posicionar soldadinhos feitos com latas de Coca-Cola ao redor de um mapa do Brasil feito de areia. Luvas vestidas, eu tomava tanto cuidado que fiquei uma hora fazendo o que um montador faria em quinze minutos. Estava quase terminando quando o Nelson Leirner entrou na sala. Levantei orgulhoso, ele me olhou do alto de sua barba branca e disse que estava tudo errado. Sabia que ele era provocador e achei que era um chiste, mas ele disse: "Os soldados estão virados ao contrário! Eles invadem, não protegem o Brasil! É a Coca-Cola" Lição básica de arte – todas as decisões potencialmente importam e não adianta afagar a obra se você não vai pensar junto com ela. Fiquei tão derrotado que nem ousei girar os bonequinhos, o montador fez isso em poucos instantes. Mas aprendi que na arte não é só o artista que pensa ou deveria pensar.
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Depois nos vimos na preparação e montagem da 29aBienal e na primeira vez que colaborei mais ativamente no processo curatorial de uma exposição no Tomie. Era 2011 e Agnaldo pediu uma força para a preparação da seção brasileira da mostra “Beuys e bem além – ensinar como arte”. O lance era que se numa sala estariam obras de Beuys e de seus alunos na outra devíamos mostrar Leirner e seus alunos. Uma parte do trabalho era entrevistar gente como Leda Catunda, Sérgio Romagnolo e Dora Longo Bahia, para juntar elementos que referendassem a força das aulas disruptivas desse artista que está entre os mais importantes professores na história da arte brasileira; a outra era ir para o Rio conversar com o Leirner e tentar confirmar algumas histórias e bater o martelo na lista de obras. Levei algumas bordoadas, mas o melhor foi ter conseguido confirmar que ele emprestaria o Projeto Aula (1989). Essa é uma das obras primas do Leirner, com especial sabor por resultar do cruzamento entre sua concepção artística e sua prática docente. Mas, para falar disso, é preciso dar uma volta.
Além das aulas na Faap iniciadas na década de 1970, Leirner começou, em algum ponto dos anos 1980, a receber alunos e ex-alunos para aulas de desenho. Além disso, oferecia formações para alguns conhecidos, como o porteiro de seu prédio, seu advogado e assim por diante. Em todas as suas atividades pedagógicas tinha como princípio motor fazer alguma proposição arbitrária, muitas vezes até absurda, sem detalhar quais caminhos resultariam em fracassos e sucessos. Quando recebia o resultado, ao contrário, Leirner costumava esmigalhar as tentativas de agradá-lo e demonstrar a potência de decisões que aos olhos dos outros alunos poderiam parecer obtusas. O jornal Rex Time, que Leirner ajudou a realizar na década de 1960, havia sido o primeiro lugar a publicar uma tradução do Ato Criador de Duchamp (acho que traduzido por Carlos Fajardo) e Leirner foi o artista brasileiro que mais sistemática e obsessivamente desafiou a ideia de autoria e as continuidades e hiatos possíveis entre a ideia e a execução de uma obra de arte. Tanto em suas aulas quanto em suas obras, esses temas foram discutidos sem trégua e sem resposta definitiva. O importante era desestabilizar convenções e respostas prontas. Muitas vezes com doses iguais de humor e acidez.
Bem, o Projeto Aula é a intersecção de tudo isso. Leirner entregou uma folha de papel enorme (tamanho A0, salvo engano) para seus alunos, tanto artistas emergentes (Edgard de Souza e Caetano de Almeida talvez tenham participado) quanto amadores (porteiro, advogado). Todos deveriam seguir as mesmas regras: desenhar uma flor com canetas coloridas tipo Bic ocupando toda a superfície do papel, sem deixar bordas ou áreas em branco. O trabalho foi massivo e maçante, como se pode imaginar. Os riscos de Bic são duros e finos e precisavam ser repetido à exaustão em hachuras convulsivas até dar conta do papel. As cores são limitadas e resultam em um claro-escuro bizarro, estranhamente expressionista. Ainda assim, pelo menos vinte alunos entregaram seu exercício. Leirner prendeu cada folha em um cavalete de madeira, os enfileirou e apresentou na galeria Luísa Strina como obra sua. Se a ideia e os parâmetros eram dele, não era dele também a obra resultante? Se suas instruções eram mecânicas e foram seguidas à risca, não se igualavam todos, artistas emergentes e diletantes, ainda que na categoria de artesãos? E se era assim, onde exatamente começava e terminava a obra? E o que implica dizer que uma obra com um complicado estatuto de autoria possa ser uma obra-prima de alguém?
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A última vez que nos vimos eu estava no Rio para gravar depoimentos de artistas para a exposição “AI-5 50 ANOS – Ainda não terminou de acabar”, de 2018. A entrevista do Leirner foi a mais curta de todas. A mais desnorteante também. Ao invés de compilar suas ousadias e provocações no período da ditadura militar, Leirner afirmou – mais melancólico que revoltado – que nada daquilo tinha feito diferença, nada havia resultado em nada. Disse que era o que ia novamente (não) acontecer com a exposição em 2018. Foi desconcertante, anticlimático. Mas, mesmo sem saber o que aquilo implicava, a entrevista entrou na exposição, era a penúltima coisa da sala. Em seu ceticismo agudo, ele estava certo. Era tarde demais, os dados estavam lançados e agora só sendo ingênuo ou arrogante para não ponderar que talvez a impotência seja o presente e o destino da arte. Mas é Leirner mesmo o melhor exemplo de que o ceticismo não precisar ser um beco sem saída. Segundo sua autonarrativa, Leirner já não acreditava na arte desde 1970, e olha o que ele fez desde então! Verdadeiro homem absurdo, como diria Albert Camus, fez da desilusão sua arma libertadora.
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Não falhava uma vez em que encontrar Leirner implicava aprender alguma coisa, ainda que pelo desconcerto. Tenho certeza que era assim para muita gente.
Foi por causa dele que eu quis dar aulas para artistas. E foi por causa do Agnaldo Farias que eu conheci ele. Então esse dia de despedida desde que soube de sua partida tem sido um dia de agradecimento.
Por aqui, ficou só um sonho em aberto. Quando perguntei sobre obras que ficaram incompletas ou censuradas por causa da ditadura, Leirner propôs pedir emprestado seu O Porco (1966) para concluir uma ação; em finais de 1969, ele participou do programa piloto de um talk show comandado por Samuel Szpiegel na rede que em breve estrearia como TV Cultura. Claro que foi extremamente provocativo em seus comentários diante da câmera, disse que o presunto que fazia parte da obra sumiu porque em Brasília sempre tem alguém para tirar um pedacinho das coisas, mas a gota d'água foi quando trouxe o porco empalhado ao palco e, depois de contar seu périplo de polêmicas relacionados a sua aceitação no salão de Brasília, começou a declamar um discurso oficialesco que culminaria na condecoração do porco pelos “serviços prestados à nação”. Alguém no estúdio percebeu o deboche, a gravação foi sumariamente interrompida e o programa que se chamaria Ver de Verdade nunca foi ao ar. Em 2018, a ideia de Leirner foi trazer o Porco e instalá-lo em frente a um painel com dezenas de medalhas de honra ao mérito, para finalmente concluir a homenagem. Infelizmente, não conseguimos o empréstimo do original, então ficou para depois a conclusão desse arco, que seria também uma forma de condecorar – com a devida dose de ironia crítica – esse imenso artista.
O rei morreu. Longa vida ao rei. Que descanse em paz (e sem paz quando quiser)!
sobre o autor
Paulo Miyada é arquiteto e urbanista pela FAU USP. Foi assistente de curadoria da 29ª Bienal de São Paulo e curador do programa Rumos do Itaú Cultural 2011-2012. Atualmente coordena o Núcleo de pesquisa e curadoria do Instituto Tomie Ohtake e é curador adjunto da 34ªBienal de São Paulo.