Ítalo Campofiorito morreu no dia 27 de maio de 2020 e sua contribuição para o patrimônio cultural brasileiro merece ser lembrada. Destaca-se sua ação no período da redemocratização do país, à frente do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro – Inepac, de 1979 a 1983; além dos muitos anos de contribuição para o campo do patrimônio em diferentes instituições municipais; na presidência da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e da Fundação Nacional pró-Memória, hoje Iphan, em 1989 e 1990, e como membro de seu conselho até 2017.
Pessoalmente trago a lembrança de quando conversamos, em 1999, sobre minha dissertação de mestrado (1). Além de um importante depoimento sobre o Inepac, ele resumiu o valor de patrimônio usando o ditado popular – Quem ama o feio bonito lhe parece. A ideia se opunha aos critérios dominantes nos trabalhos de seleção dos imóveis e sítios urbanos como patrimônio, orientados pelo olhar educado dos arquitetos, com base na história consagrada dos estilos. No seu entendimento faltava o resto; as representações culturais que haviam ficado de fora das políticas públicas da preservação no Brasil.
Ítalo foi personagem importante entre os que propunham novos caminhos para um patrimônio abrangente, ativo, vivo. Fazia parte de um pensamento que considerava a ação federal desenvolvida no Brasil, até então, “discriminatória” (2), por não incluir os bens materiais da cultura popular e dos diferentes grupos: afro-brasileiros e indígenas.
Durante a gestão de Ítalo, no Inepac, ocorreram ações de atendimento às comunidades, como os dezoito imóveis tombados pelo governo estadual em Angra dos Reis, todos resultando do interesse de grupos da população local, por considerá-los referências de sua história (3). No caso do conjunto eclético da Rua da Carioca, no Rio de Janeiro, Ítalo refere-se à atitude “altamente louvável e ao legítimo empenho da comunidade de comerciantes locais em ver garantidas, pelo tombamento, as obras de restauração, que estão dispostos a fazer por sua própria conta” (4). A Fundição Progresso, no centro do Rio de Janeiro, teve seu tombamento motivado pelo interesse comunitário de promover um uso cultural no amplo espaço desativado da antiga fábrica, que estava sendo demolida (5). A Casa das Irmãs Perry, em Teresópolis, – com pedido de tombamento feito pelas proprietárias – embora sem atributos arquitetônicos consagrados, expressava a história da cidade em seus modos de viver (6). Foram ações de proteção de bens sem as características tradicionalmente reconhecidas como patrimônio, de projeção nacional, colocando um desafio para sua conservação, por não serem priorizados na gestão pública, nos investimentos e incentivos, sujeitando-se à deterioração e aos interesses do capital especulativo, como é o caso da Rua da Carioca, esvaziada em suas funções comerciais tradicionais.
Ítalo imprimiu uma força democrática nas ações de proteção do patrimônio cultural dando importância aos desejos manifestados por grupos sociais pela preservação de seus bens, conforme meta por ele estabelecida na direção do Inepac. Em artigo publicado na Revista do Brasil, ele escreve: “Para garantir uma opção popular é preciso retomar desassombradamente uma postura solidária com a beleza e com a contemporaneidade, com o Brasil e o ponto de vista do povo – a começar pelos segmentos sociais mais traumatizados” (7).
Ele dirigiu instituições e, democrata, as respeitava, trabalhando em harmonia com suas equipes, embora preocupando-se com a hegemonia do saber técnico, quando afirmava ser “preciso reconhecer que a cultura é coisa séria demais para ser entregue a eruditos e especialistas” (8). Eram tempos de redemocratização do país e cabia radicalizar para despertar o respeito à diversidade cultural e o respeito a outros saberes.
Ítalo criticava práticas tradicionais de valorização de bens culturais como sendo de um “reinado elitista”, e propunha recomeçar, dizendo:
“Como se dizia dos Reis: o patrimônio morreu, viva o patrimônio! Para recomeçar pelo começo — de que é que tem que tratar o mandamento constitucional de proteção à cultura? Basicamente de preservar a identidade cultural do Brasil. De configurar e nutrir um rosto em que o país se reconheça perante os demais, e, entre todas as feições possíveis, afirmar aquele que o povo prefira para o seu gáudio próprio e para o finca-pé de sua defesa como nação que tenha um projeto intencional para si própria” (9).
Após análise da atuação do Iphan, em seu texto de título sugestivo – Muda o mundo do patrimônio –, ele perguntou sobre o que faltava, sobre o resto:
“E os outros templos, os lugares sagrados da africanidade? E os heróis dos quilombos e das revoltas populares? E a apreciação do espaço na expressão coletiva das favelas, no que tem de criação da pobreza e dos quilombos contemporâneos? Não há traços, ainda que tênues e combalidos, de nada disso a documentar, a tombar e a conservar? Coisas outras ou outras leituras das mesmas coisas, mas que não demonstrem apenas a “criança asilada” e conduzida pela empresa colonial” (10).
No balanço geral de sua gestão no Inepac, Ítalo preocupou-se com os instrumentos de proteção do patrimônio cultural, perguntando:
“Como incluir nesse patrimônio reduzido, os bens em movimento, as manifestações culturais, os conjuntos arquitetônicos mais significativos, os traços traumatizados da cultura oprimida, os símbolos da negritude e da indianidade, as coisas pobres, as vivas e as triviais?” (11)
Pouco depois, em 1988, a Constituição Federal, nossa constituição cidadã, marcou a memória, identidade e ação dos grupos sociais como referência de valorização de bens culturais e tornou possível a regulamentação de novos instrumentos de preservação no atendimento à diversidade que estava sendo reivindicada. Definiu que “o poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”.
No Iphan Ítalo fortaleceu os trabalhos de pesquisa, com destaque para os inventários, investindo em um convênio com a IBM Brasil. A informatização, uma banalidade nos dias de hoje, era inimaginável antes de seu esforço. Os computadores, doados, serviriam inicialmente para os inventários dos sítios urbanos de modo que as informações a respeito das cidades ficassem acessíveis ao público; embora interrompida, foi experiência importante para a modernização da instituição. E não se pode esquecer do que foi inovador no tombamento do Conjunto Urbanístico de Brasília, em 1990; uma proteção adequada à natureza de uma cidade com aquelas dimensões e ainda em construção (12). Os critérios eram claros: transformações, desde que os princípios modernistas do Plano Piloto projetado por Lucio Costa fossem mantidos. Os prédios podem ser modificados, superquadras podem ser ocupadas, mas não se pode romper com a lógica daqueles princípios do projeto da cidade.
Ítalo nos deixou pensamentos sobre a diversidade cultural, desenvolvidos num contexto em que era preciso encontrar caminhos para o atendimento às demandas sociais, participando da construção de um conceito mais amplo de patrimônio e capaz de reconhecer a produção de todos os brasileiros. Mesmo sendo um caminho difícil, de tensões, avanços e retrocessos, devem, os profissionais desse campo, percorrê-lo persistindo na luta pelo respeito às diferenças na proteção dos bens culturais. Como disse Jaques Le Goff, cabe aos “profissionais científicos da memória, antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos, [arquitetos, urbanistas], fazer da luta pela democratização da memória social, um dos imperativos prioritários da sua objetividade científica” (13).
notas
1
MOTTA, Lia. Patrimônio urbano memória social: práticas discursivas e seletivas de preservação cultural - 1975 a 1990. Rio de Janeiro, 2000. Dissertação de mestrado em História Social e Documentação. Rio de Janeiro, UFRJ, 2000.
2
Cf.: Termo usado por Ítalo Campofiorito. CAMPOFIORITO, Ítalo. Patrimônio cultural: onde a cultura existe dar voz a ela. In: Revista do Brasil, Edição Especial. Rio de Janeiro, Governo do Estado, 1986, p. 8.
3
Cf. Tombamento de Imóveis em Angra dos Reis. Processo Inepac n. E-03/27.970/82. Arquivo do Conselho do Inepac.
4
Cf. Tombamento da Rua da Carioca. Processo Inepac n. E-03/37.709/82. Arquivo do Conselho do Inepac.
5
Cf. Tombamento da Fundição Progresso. Processo Inepac n. E-03/02.018/80. Arquivo do Conselho do Inepac.
6
Cf. Tombamento da Casa das Irmãs Perry. Processo Inepac n. E-03/14.075/81. Arquivo do Conselho do Inepac.
7
Cf. CAMPOFIORITO, Ítalo. O tombamento é um santo remédio. In: Revista do Brasil, ano 1, n.1. Rio de Janeiro: Governo do Estado, 1984, p. 20.
8
Cf.: CAMPOFIORITO, Ítalo. Muda o mundo do patrimônio – notas para um balanço crítico. Revista do Brasil, ano 2, n. 4, Rio de Janeiro, Governo do Estado, 1985, p. 42.
9
Idem, ibidem, p. 40.
10
Idem, ibidem, p. 41.
11
Cf. CAMPOFIORITO, Ítalo. Patrimônio cultural: onde a cultura existe dar voz a ela. In: Revista do Brasil, Edição Especial. Rio de Janeiro: Governo do Estado, 1986, p. 8.
12
Tombamento do Conjunto Urbanístico de Brasília. Processo nº 1305-T-90. Arquivo Central do Iphan – Seção Rio de Janeiro.
13
Cf. LE GOFF, Jacques. Memória. In: Enciclopédia Einaudi. Volume 1 – Memória-história. Lisboa, Imprensa Nacional, 1984, p. 47.
sobre a autora
Lia Motta é arquiteta do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, mestre em memória social pela Unirio e doutora em urbanismo pela UFRJ. Faz parte do corpo docente permanente do Mestrado Profissional do Iphan.