Recordei desse desejo que sempre professo em sala de aula aos meus alunos no Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência, 21 de setembro. No início, todos se assustam, até eu iniciar um relato pessoal. Em 2003, ENEA Ouro Preto, ainda caloura, 19 anos, jovem, empolgada, deslumbrada com aquele Encontro Nacional de Estudantes de Arquitetura e Urbanismo que reuniu cinco mil participantes de todo país. Pessoas diversas, festas, palestras, trabalhos, oficinas, uma injeção de arquitetura na veia em meio a um cenário pictórico regado a muita bebida barata e conversa fluida.
Tudo ia bem até eu torcer o tornozelo no 3º dia de encontro. A torção não foi em uma ladeira, não foi em uma rua com calçamento em pedra pé de moleque, foi no local mais plano da cidade onde as festas noturnas ocorriam, o estacionamento do centro de convenções da Universidade Federal de Ouro Preto – Ufop. Um desnível despercebido ocasionou uma pisada em falso e depois de muitos metros cambaleando a queda foi inevitável, quebrei o pé, pensei.
Após algumas risadas os colegas perceberam que havia sido sério. Eu não conseguia ficar de pé. Fui atendida pelos socorristas, saí da festa carregada no colo para uma ambulância e despachada para o hospital. Uma madrugada no leito para na manhã do dia seguinte descobrir que havia torcido o pé esquerdo, imobilização recomendada e o início de uma série de dificuldades.
A compra do estabilizador de tornozelo e o aluguel de uma muleta dependeram da assistência dos colegas, bem como, ajuda para se deslocar, acessar os ambientes e realizar algumas tarefas simples, se servir no refeitório, por exemplo. Aquele poderia ter sido o fim de uma viagem, mas foi a maior lição de empatia que tive na vida.
As dificuldades de realizar tarefas simples, habituais ao meu cotidiano, e facilmente transponíveis se tornaram complexas por um pequeno acidente. Tomar banho, se vestir, subir ou descer uma escada, andar na calçada viraram pequenos desafios que fazem parte do dia a dia das pessoas com deficiência.
Fiquei um mês com o estabilizador de tornozelo, mas a lição ficou para a vida. Obviamente que não é necessário passar por uma restrição ou ter qualquer mobilidade reduzida temporária para perceber que as nossas cidades não estão adaptadas aos 24% de cidadãos e cidadãs com deficiência. Mas, às vezes, é preciso para sentir que a dificuldade de alguns centímetros a mais de meio fio se transformam em um imenso empecilho, sendo assim o viver dessa camada da população.
O centímetro a mais que não faria tanta diferença, a ausência de rampas ou a inclinação inadequada, os degraus não padronizados, a ausência de guarda-corpo, de corrimão, letreiros inacessíveis, falta de avisos sonoros, táteis, alturas irregulares, e tantos outras recomendações da norma de acessibilidade ausentes do ambiente público cerceiam a transitabilidade e o exercício de cidadania de 1/5 da população brasileira. Lembrando que deficiência não é apenas uma condição inata, pode ser adquirida e, também, pode ser temporária, como o que ocorreu comigo. Então prezar a acessibilidade além de inclusivo é pensar nas pessoas, projetar conforme a norma é projetar para as pessoas, ensino isso aos meus alunos e alunas.
Inicialmente, muitos desses alunos e dessas alunas encaram a NBR 9050, norma de acessibilidade, como uma norma específica aos cadeirantes, talvez pela imagem mental do pictograma, símbolo internacional que representa a deficiência locomotora ou sensorial, ou por conta de considerarem uma deficiência muito restritiva, o que acabaria englobando outras deficiências na projetação dos espaços. Tanto que ficam surpresos com os diversos tipos de deficiência e suas restrições, surgindo frases como nunca havia pensado nisso ou não sabia que era considerado uma deficiência. Acredito que essas frases devem compor o imaginário popular acerca da deficiência, a falta de representatividade faz desse um problema distante, mesmo com os números oficiais indicando o contrário.
A norma publicada em 1994, iniciada em discussões ainda nos anos de 1980, reelaborada, atualizada e reeditada 10 anos após a sua publicação inicial, em 2004, depois em 2015 e agora, com o lançamento de uma nova revisão em 2020 ainda é falha na transposição do papel para a realidade dos centros urbanos brasileiros, mesmo sendo primorosa em conteúdo. Um fato do país, normas bem elaboradas, mas não universalizadas.
Esse assunto me fez lembrar que em breve, dia 11 de outubro, será o Dia Nacional da Pessoa com Deficiência Física, mais um dia pontual de luta e militância para se exigir a aplicação da NBR 9050. Enquanto a norma de acessibilidade ainda não tem a sua aplicabilidade plena continuo desejando que os jovens arquitetos quebrem a perna, pois quem sabe se os velhos tivessem sofrido esse trauma a realidade poderia ser diferente.
sobre a autora
Ana Isabela Soares Martins da Silva é Arquiteta Urbanista e professora do IFB.