É impossível ficar indiferente ao avistar o edifício cujo formato de meia-lua surpreende quem passa pela avenida brigadeiro Luiz António. O Hotel Unique projetado pelo arquiteto Ruy Ohtake despertou discussão nos profissionais da área, muitas vezes avessos a traços fora da cartilha. Mas suas linhas transcenderam o universo restrito da discussão arquitetônica para conseguir um feito cada vez mais raro: fazer parte do imaginário do público geral e assim colaborar com a construção da imagem da cidade de São Paulo.
Se engana quem a partida resume sua obra ao produto de um desenho livre de interesse apenas formal. A superfície de sua prancheta foi base para projetos das mais diversas escalas e mais variadas funções.
Seu trabalho projetual não se limitou a classe social ou programa: a mesma forma que definiu o luxuoso hotel próximo ao Ibirapuera, abriga um terminal intermodal de transporte público junto ao Parque Dom Pedro. Estes exemplos, como outros de seus demais projetos não se resumem apenas a um exercício de desenho da forma.
Sustentado por um pilar roxo em formato de carambola está um dos espaços expositivos de maior qualidade da cidade, o Instituto Tomie Ohtake. Instituto esse que leva o nome da mãe do arquiteto, longeva artista plástica cuja casa no Campo Belo, projetada pelo filho nos anos 1960, já revelava a genialidade do arquiteto em criar espaços de qualidade excepcional, sem precisar se apoiar em recursos mirabolantes.
A residência térrea coberta por uma laje que se apoia numa sucessão de vigas idênticas de pé direito baixíssimo, cria uma espécie de praça coberta – tomando aqui de empréstimo a bela analogia de Ruth Verde Zein – iluminada por aberturas zenitais, para então ao fundo se abrir para o trecho mais largo do terreno e ganhar continuidade com o jardim. O espaço do atelier, junto ao pequeno quarto da mãe, ganha pé direito com a escavação no terreno, trazendo espaço para as peças da artista sem comprometer a linearidade estrutural da construção.
A belíssima produção residencial do arquiteto, principalmente nos anos 1960 e 1970, nos ensina sobre a importância de fazer dos espaços de vivência locais não só utilitários, mas de qualidade espacial, que provocam o interesse de quem os habita e estimulam o convívio de seus moradores.
É o caso da residência Paulo Bittencourt Filho, de 1972, que estampou as páginas desta mesma Folha em agosto de 2013. Seus quartos pequenos, pés direitos baixos e concreto aparente desagradaram o novo comprador que pretendia demoli-la para construir uma casa em consonância às vizinhas neoclássicas do Jardim Lusitânia. Mas a residência sem muros ou grades, com ambientes abertos, ótimo aproveitamento do terreno e luz natural filtrada pelo pergolado formado pela própria estrutura, mostrou-se digna de ser mantida como importante contributo para o repertório arquitetônico paulistano. A eminência da perda acelerou um conjunto de tombamentos de residências emblemáticas do arquiteto.
A qualidade estrutural com a qual desenvolveu seus edifícios deixa claro seu interesse nesse contraste das formas curvas e fluidas com o rigor do desenho em busca do interesse espacial. Em outra obra de destaque – o hotel Renaissance – a profusão de curvas de concreto do térreo do edifício vai resolver internamente e de forma magistral a difícil conexão entre os dois níveis de rua de uma esquina em declive em Cerqueira César, resultando num espaço de qualidade para uso publico.
Com essa mesma postura desenvolveu diversos projetos num amplo espectro de atuação, o qual inclui o conjunto de habitação de interesse social de Heliópolis, os edifícios industriais da Aché Laboratórios Farmacêuticos, o parque ecológico do Tietê, equipamentos como a Central Telefônica de Campos do Jordão, escolas, agências bancárias, além de uma série de edifícios residenciais – como os belos Quatiara, Riachuelo, Guarapari e Humaitá, projetados em 1972 – e comerciais – com destaque para o Paranapanema, de 1986.
Numa profissão que ainda hoje tem sua discussão bastante limitada aos profissionais e estudiosos da área, a ampla e diversificada produção de Ruy Ohtake deixa um legado que rompe a bolha para provocar um debate aberto sobre a necessidade de se pensar com qualidade e interesse os espaços para nossas cidades.
nota
NE – Publicação original do artigo: SCARPA, André. Filho de Tomie rompeu a bolha e cedeu talento para o luxuoso e para o popular. Caderno Ilustrada. Folha de São Paulo, São Paulo, 28 nov. 2021, p. B7.
sobre o autor
André Scarpa é arquiteto formado pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto em Portugal, se dedica a atividade projetual, fotografia de arquitetura e roteiros para passeios arquitetônicos. Criador do Betoneira, um podcast sobre arquitetura, pessoas e cidades.
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