Quando o capitão presidente respondeu ao #bolsonarovagabundo, dizendo que não estava em férias, ele disse a verdade.
Por mais que a parcela da sociedade brasileira — minoritária, é bom lembrar — em que eu e boa parte dos eventuais leitores nos enquadramos relute em acreditar que desse personagem possa sair de vez em quando uma informação verdadeira, vale a pena refletir sobre a confissão de que ele estava trabalhando.
E quem negará que o fez de uma maneira extremamente eficaz e proveitosa? Para os interesses dele e de sua familícia, responderão mentalmente alguns. Evidente! E o que se esperava a esta altura dos acontecimentos? A quem e a quê serve continuar repetindo que se trata de alguém despreparado para o cargo, ou insensível, ou descolado dos interesses do Brasil?
Parêntesis pessoal: depois de muitos meses de isolamento vim alguns dias à capital e fiquei chocado com a proliferação de campos de refugiados em que se transformaram os canteiros de avenidas, os baixos de viadutos e as praças centrais da cidade.
Com a diferença, não irrelevante, de que não vi nenhuma barraca com a cruz vermelha (será por isso?), dos médicos sem fronteiras ou de qualquer ONG internacional.
E o que são essas mais de setenta mil pessoas, velhos e crianças, mulheres e homens, pretos e até brancos, que nosso prurido linguístico qualifica como “em situação de rua”, senão a ponta visível de um enorme iceberg de refugiados no que apenas por liberdade poética se pode chamar de sua própria terra?
Talvez em lugar de insistir nos setores das Nações Unidas para os direitos humanos, de enviar a enésima representação ao Tribunal Internacional de Haia ou de continuar discutindo se tecnicamente pode-se falar em genocídio, os humanistas brasileiros devessem acionar diretamente o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados.
Fecho parêntesis. Não é necessária, embora certamente seja recomendável, estar atento ao que significam as operações psicológicas, psy ops, nova forma (potencializada pela internet) da guerra permanente contra a população para compreender como funciona competente ação diversionista executada pelo capitão e por sua qualificada entourage.
Qualificada sim. Porque é ridículo continuar se satisfazendo com memes de pretensa superioridade sobre quem, afinal de contas, está ganhando o jogo por um ainda mais doloroso 7X1.
Agregue-se aos refugiados a população do sul do Bahia e agora também de boa parte de Minas. Agregue-se aos refugiados os 13 milhões de desempregados formais, os outros tantos de jovens nem-nem (nem estudam nem tem trabalho) e os 60 ou 70 milhões de brasileiros que hesitamos em afirmar que tem fome.
Enquanto o Congresso Nacional segue aprovando a toque de caixa toda a boiada das “reformas” nós nos divertimos reproduzindo cada mísero post estrategicamente liberado pela equipe do capitão e sua assessoria internacional (Bannon, lembram?) e, suprema criatividade, aderimos à campanha do camarão.
Não vi, em meus passeios de vidros fechados por São Paulo, nenhum cartaz de “insegurança alimentar”. Mas vi muitos com a mensagem direta — Fome — e um que me obrigou a refletir: pedia ajuda para poder comprar uma carroça para recolher reciclado.
Lembrei muito da USP, ali, a uma janela de automóvel de distância dessa magnífica expressão do empreendedorismo à brasileira.
Vamos parar de cair na armadilha da porra do camarão! De contar quantos dias faltam para o Lula assumir. E de transformar contra-almirante em herói.
Ou 7x1 ainda foi pouco?
sobre o autor
Carlos A. Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.