A “crise dos mísseis de Cuba”, pôs frente a frente, em 1962, Krushev, o líder soviético do chamado período de desestalinização, e o jovem e midiático John F. Kenedy, protagonista do que a máquina estadunidense de construir representações chamou de Camelot americana, em referência ao encanto do lenda do Rei Arthur, massificada pela Disney na animação longa-metragem de 1963.
Raros historiadores discordam de que foi “momento mais quente da Guerra Fria”, quando o planeta esteve perto de uma guerra nuclear com capacidade de fazê-lo em pedaços.
Para quem não se lembra, Cuba havia passado, em 1959, por uma revolução democrática não reconhecida pelo governo dos EUA. E antes que alguém pense que estou passando pano para o que a mídia nacional trata como a “ditadura cubana”, resgato que no momento da derrubada do general Batista, Fidel Castro não era membro do Partido Comunista Cubano, que aliás, só apoiou os guerrilheiros de Sierra Maestra quando esta já estava a caminho de Havana.
Quem quiser saber o que era Cuba nesse momento pode assistir O Poderoso Chefão 2, de Copolla, que traça um excelente panorama da ilha que as máfias norte-americanas consideravam seu cassino e prostíbulo privativos.
A política de asfixia econômica via embargo (que está aí até hoje); a frustrada invasão da Baía dos Porcos em 1961 e as várias tentativas de assassinato de Fidel, hoje conhecidas pela abertura de documentos militares norte-americanos, acabaram por jogar Cuba nos braços da única potência que poderia se opor aos EUA.
Krushev precisava se afirmar como liderança soviética inconteste, em função das dificuldades da política econômica, assim como responder à instalação, secreta e só depois reconhecida, de misseis balísticos estadunidenses na Itália e na Turquia. Isso o levou a aceitar a solicitação cubana de instalação de misseis para dissuadir a potência do norte de novas tentativas de invasão.
Kennedy, por sua vez, havia derrotado por pequena margem a Richard Nixon no final de 1960 e enfrentaria as eleições chamadas middle term (eleições legislativas e para governos estaduais na metade do mandato presidencial) pressionado pelas acusações de nada fazer diante da instalação de armas atômicas a 180 quilômetros da Flórida.
Essa volta ao passado serve para lembrar que, para além dos poderosos interesses das grandes corporações e do complexo industrial militar, há as pressões políticas que atuam sobre os dirigentes em função de suas situações internas. Desde então o mundo mudou muito, mas essa dinâmica da relação entre política interna e guerra continua operante.
Talvez possamos dizer que temos dois impérios de primeira linha, um ascendente (China), outro declinante (EUA) e um terceiro (Rússia) humilhado e ressentido. Cada um deles com líderes em diferentes situações.
Biden, mesmo sem razões pessoais para ser um falcão, está acuado politicamente. A insistência na denúncia de uma “iminente invasão” da Ucrânia, desmentida até mesmo pelo pró-ocidental presidente ucraniano, Zelensky, lembra inevitavelmente a ficção das “armas de destruição em massa” de Sadam Hussein, nunca encontradas.
Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido, pegou carona para tentar distrair seus compatriotas do escândalo das festas na sede do governo enquanto os britânicos eram submetidos aos rigores do afastamento social.
Macron, presidente francês, que enfrentará em abril uma campanha à reeleição ameaçada pelo crescimento da ultradireita, quer apresentar-se como estadista mediador da paz aos saudosistas da grandeza da França.
Do outro lado do tabuleiro, estão dois autocratas, Putin e Xi Jinping, pelos quais ninguém está obrigado a ter simpatia. Mas seria um erro grave deixar de reconhecer em ambos, além de poderio militar no primeiro e econômico no segundo, uma boa dose de sangue frio e visão de longo prazo.
No meio, outra vez, a humanidade.
sobre o autor
Carlos Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.