Talvez fosse divertido acompanhar a politica e a imprensa neste inicio da terceira década do século 21 se fossemos antropólogos extraterrestres estudando o caso curioso de uma espécie aparentemente empenhada na sua autodestruição.
Não se trata de algo novo. Para dar um exemplo da minha área, Lúcio Costa, o urbanista de Brasília e ideólogo da arquitetura moderna brasileira, já comentava, num texto de noventa anos atrás (Razões da nova arquitetura, 1934) que a arquitetura poderia resolver problemas humanos seculares, “não estivesse a burguesia tão obstinada no seu próprio suicídio”.
Olhando mais de perto talvez essa constatação precise ser refinada. Nada indica que a burguesia (o que quer que essa palavra signifique hoje) esteja decidida ao suicídio. Afinal, não se deve confundir indiferença ao homicídio, inclusive massivo, com a decisão de dar cabo da própria existência.
É bastante razoável supor que os donos do Big Money internacional tenham assessores capazes de avaliar os impactos ambientais do aquecimento global e os riscos que isso implica para a sobrevivência de parte considerável da espécie humana.
Por isso talvez seja o caso de deixar de olhar as inciativas privadas de desenvolvimento de viagens espaciais e projeto de colonização de Marte como mera excentricidade de personagens como Bezos ou Musk. No mínimo é uma boa desculpa para rever Blade Runner, o original de 1985.
É o que nos mostra com absoluta crueza a decisão do deep state norte-americano, já garantida a submissão incondicional dos países europeus, a resistir à invasão russa na Ucrânia “até o último ucraniano”.
Aqui neste recanto do que um dia pretendeu ser Sul Global, atualiza-se a máxima de que “não existe pecado abaixo do Equador”. De fato, condenar cerca da metade da população brasileira a esse eufemismo chamado insegurança alimentar já não parece afetar nem mesmo os supostamente mais religiosos. E se dermos o nome correto (fome) isso tampouco muda muita coisa.
Que os militares de alto escalão tenham acabado de receber um presentinho de pós-Páscoa de cerca de 200 salários mínimos pelos bons serviços de cada general merece dois dias de destaque na imprensa para logo ser enviado para o esquecimento. Como os 39 quilos de cocaína num avião da comitiva presidencial, como todas as falcatruas explicitas da familícia, como a boiada que continua passando, como mais de 650 mil mortes de gripezinha, como o assassinato de lideranças indígenas e o estupro de suas mulheres e crianças, e outros milhares de etc.
Mas diante a possibilidade (nem fácil nem garantida) de interromper essa espiral de violência, criminalidade e destruição do patrimônio nacional, setores da chamada burguesia “nacional”, de seus representantes na grande imprensa e até mesmo em círculos que se consideram esquerda, a cobrança é ao Lula, que ainda “não mostrou seu programa”.
Ele já disse que saúde e educação não podem ficar reféns do teto de gastos; já disse que Petrobrás e Eletrobrás são patrimônio do país e condição de soberania; já disse qual deve ser a posição internacional do Brasil e já disse que não é tolerável que metade da população do maior produtor de proteína animal do planeta passe fome.
Mas as viúvas da terceira via querem mais. Para poder dizer, como o Estadão, que “promessa solene de Lula de acabar como o teto dos gastos públicos, criado para remediar a lambanças petistas, é uma ameaça aos mais pobres...” Parece que os Mesquita já não estão diante de uma escolha difícil.
Nem a turma do Frias que, insatisfeito com o serviço que os Boghossian e os Magnoli já prestam, foi buscar reforço internacional numa professora aposentada da escola de Chicago que veio nos ensinar que precisamos aprender com Hayek, “que não era conservador. É verdade que ele estupidamente passou algumas semanas dando conselhos estúpidos a Pinochet”.
Mais de 3000 mortos, 30 mil torturados e 80 mil presos por uma das ditaduras mais sanguinárias e corruptas da América Latina foi apenas uma estupidez ocasional, que não haveria nada de mais em repetir agora. O capitão, aliás, já disse que gostaria.
A grande imprensa, assim como a Faria Lima e os patrões a quem servem, não tiveram dúvidas em 2018 e não estão arrependidos da escolha que fizeram. A entrega do estado e do país a um conglomerado de militares, milicianos, exploradores do templo e usurários internacionais não é nada pessoal contra a população brasileira. It’s just business.
sobre o autor
Carlos Alberto Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.