A mídia corporativa está preocupada porque o “mercado” reagiu mal a uma declaração do presidente eleito sobre a necessidade de priorizar investimentos sociais ao longo de seu governo.
Lula apenas reiterava a necessidade de viabilizar as alterações no orçamento do próximo ano que permitam pagar os 600 reais do auxílio emergencial, recuperar a Farmácia Popular, iniciar a recuperação do salário-mínimo e o programa de combate à fome.
O pecado capital, capaz de provocar abalos sísmicos na Bolsa de Valores e no câmbio, foi o uso da expressão “esse tal de equilíbrio fiscal”.
A julgar pelas reações, essa declaração teria mais potencial de desestabilização do país do que os quatro anos de bolsonarismo, as ameaças de golpe antes, durante e depois das eleições ou os criminosos bloqueios de rodovias financiados, como já começa a ser apurado, por empresários e políticos articulados nacionalmente.
Para qualquer cidadão que não receba comissão ou dividendos sobre os investimentos do tal “mercado” algumas perguntas se impõem. A primeira: quem é mesmo esse personagem, “o tal de mercado”, para parafrasear o presidente eleito? A segunda: qual foi, exatamente, a novidade que provocou tanto rebuliço?
“Mercado” ou “mercados”, na novilíngua neoliberal é um curioso caso de deslizamento linguístico. Aprendemos na escola que mercado é aquele lugar onde se realizam as trocas de mercadorias entre quem produz e quem consome. De lugar físico onde as trocas se realizam, a palavra passou a designar toda a dinâmica da oferta e procura de mercadorias e serviços.
Mas quando nossos pseudojornalistas usam a palavra “mercado” eles não estão falando de nada disso. Tanto assim que foi preciso inventar a expressão “economia real” para designar esses processos sociais concretos, que envolvem produção e consumo de bens e serviços concretos por pessoas concretas.
O tal do “mercado” designa, de fato, aquele 0,1% da população que vive da especulação financeira e da brutal e obscena transferência de renda dos pobres para os muito ricos. Menos comida na mesa de imensas parcelas na população significa mais iates e helicópteros sem pagar IPVA, para ficar em termos brasileiros.
Curioso que esse deslizamento linguístico também atribua a essa nebulosa entidade características de ser vivo. E bem estresssadinho. Às vezes se comporta como manada, às vezes está tranquilo, outras excitado e, de vez em quando, como agora, tem surtos de nervosismo. Ou ataques histéricos.
Sobre a “novidade”, Lula, na prática, reafirmou sua intenção de eliminar o chamado “teto de gastos”, dispositivo constitucional aprovado pelo governo golpista de Michel Temer em 2017 e defendido pelo “mercado” e seus jornalistas amestrados.
As prioridades de Lula, expressas desde 2019 e reiteradas enfaticamente durante a campanha nunca esconderam que são contraditórias com um dispositivo constitucional, altamente prejudicial à maioria da população e que se vende com o eufemismo de “equilíbrio fiscal”.
Nesse discurso interessado, o teto de gastos é só uma medida de bom senso ou responsabilidade porque afinal, assim como em casa, ninguém deveria gastar mais do que ganha, certo?
Mas não há nenhum caso de país capitalista desenvolvido que não tenha dívidas públicas, ou seja, que não tenha contraído empréstimos ao longo dos anos para realizar mais investimentos ou despesas do que arrecadava de impostos.
Muitos dos países que o vira-latismo gosta de chamar de “primeiro mundo” tem dívidas públicas muito maiores que a brasileira, tanto em termos nominais como na relação dívida/PIB.
E não tem teto formal de gastos nem os mercados o exigem.
Para ser preciso, legislar sobre limitação de gastos estatais foi tentado em alguns poucos países capitalistas, como Holanda, Finlândia e Suécia.
Mas em nenhum deles, o prazo foi superior a quatro anos, nenhum deles a inseriu na constituição e nenhum deles excluiu das restrições o pagamento de juros e serviço da dívida.
O teto que o tal do “mercado” defende pretende controlar a ação dos governos brasileiros durante vinte anos, está inserido na Constituição, e não inclui o pagamento do chamado serviço da dívida.
Traduzindo em bom português: se um hipotético governo negacionista reduzir brutalmente o orçamento da educação, ou da ciência e tecnologia, ou da saúde, ou do combate à fome, o governo que o suceda só pode aumentar essas dotações, no ano seguinte, no limite da inflação. Mas pode aumentar sem limites o pagamento dos juros que “tranquilizam” o mercado.
A oposição a temer e depois a Bolsonaro (ambos agora decididamente minúsculos) foi incapaz de impedir a aprovação, mas sempre questionou a sua constitucionalidade. E Lula vem dizendo desde 2019 que, se eleito, o substituiria por algum outro instrumento.
O fim do teto de gastos foi um dos eixos de seu programa de governo. E esse programa de governo foi aprovado majoritariamente pelos eleitores. Então não é mais “promessa de campanha”, é acordo firmado com o eleitor.
O “mercado”, que é normalmente tão cioso do respeito aos contratos não parece considerar a eleição como um contrato estabelecido entre candidato e eleitor.
Das poucas vozes da grande imprensa que não repetiram a ladainha dos farialimers, Leo Sakamoto lembrava no UOL que pedir que Lula mantenha o teto é pedir que ele cometa estelionato eleitoral.
Octavio Guedes, na GloboNews, foi na medalhinha, lembrando que o “mercado” é bolsonarista, o foi durante quatro anos e não deixou de ser depois da eleição.
Em linguagem das quebradas: alguém precisa avisar o mercado que eles perderam, playboys!
sobre o autor
Carlos Alberto Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.