O ridículo festival do locaute das empresas de transportes e das manifestações histéricas pedindo intervenção militar não pode obscurecer o fato de que a gigantesca vitória de Lula significa que o Brasil e o planeta ganharam mais quatro anos para tentar adiar o fim do mundo, nos muitos sentidos que o líder Ailton Krenak dá a essa expressão.
Gigantesca, hercúlea ou epopeica são adjetivos que, por muitas razões, podem ser aplicadas a essa eleição, por mais que isso pareça contraditório com a estreita margem de 2 milhões de votos. Um marciano que chegasse agora teria o direito de considerar a eleição apertada. Mas não alguém que considere as condições não isonômicas e antirrepublicanas do embate, antes, durante e depois da eleição.
No período em que Lula permaneceu na carceragem da Polícia Federal, o acampamento da vigília de solidariedade foi ameaçado física e moralmente, enquanto a corrente central da mídia corporativa martelava a narrativa do maior episódio de corrupção da história nacional.
O singelo “o senhor não deve nada à justiça” pronunciado por Bonner durante o primeiro debate provocou um inusitado direito de resposta, mas não poderia ter o condão de apagar em milhões de mentes formadas cotidianamente pelos meios de massa a pecha de ladrão, de corrupto ou, na perversa versão bolsonarista, de “descondenado”.
Para pouco menos da metade da população, Lula é o único brasileiro que não tem direito à presunção de inocência. Teve sua vida, a de sua família e de seus colaboradores revirada do avesso durante anos sem que nada fosse encontrado, mas aquele cuja família comprou 51 imóveis em dinheiro vivo, o chama de ladrão e tem o respaldo de milhões de pessoas.
A torrente de invenções disseminadas pelas redes sociais superou o patamar de 2018, com a mamadeira de piroca substituída pela ameaça de fechamento de igrejas ou de implantação de banheiros unissex.
Mas enquanto as pesquisas mostravam a enorme resiliência desse personagem que, segundo ele mesmo, é uma ideia mais que uma pessoa, ficou claro que o impulsionamento de fake news não seria suficiente para erradicar a ideia de um Brasil sem fome, com livros no lugar de armas.
E a isso se seguiu a escandalosa derrama de dinheiro em período eleitoral, à revelia da legislação eleitoral e da constituição. Ao orçamento secreto se somaram o Auxílio Brasil, a manipulação escancarada dos preços de combustíveis, as bolsas caminhoneiros e taxistas, num festival incontrolado que só agora começa a ser precificado.
Em termos formais, o orçamento para 2023 enviado pelo governo Bolsonaro prevê um déficit de 65 bilhões de reais. Mas para manter o Bolsa Família em 600 reais por mês, como o próprio Bolsonaro prometeu; retomar aumento real do salário mínimo e recuperar investimentos essenciais como a Farmácia Popular, o rombo do orçamento estará em torno de 400 bilhões de reais.
Esse cálculo não é de petistas. Foi realizado por Henrique Meirelles, sonho de consumo dos que não veem alternativa senão aderir ao Governo Lula, depois de tudo terem tentado fazer para impedi-lo.
E “tudo” inclui ameaças explícitas e gravadas de patrões nos locais de trabalho, compra de votos por prefeitos como a divulgada pelo Globo Repórter ou outros que provavelmente ainda virão à tona. Para não falar da escandalosa violação das determinações legais pela Polícia Rodoviária Federal, dirigida pelo detentor de enorme capivara e incapaz – por conivência – de realizar aquilo que as torcidas organizadas não precisaram de mais do que 15 minutos para fazer.
A tentativa de golpe, de que os bloqueios eram o primeiro passo, foi travada por uma resposta internacional unânime, rápida e coordenada. Biden, não satisfeito em saudar o eleito, mudou o protocolo para se referir à lisura das eleições. A Noruega e a Finlândia anunciaram a retomada dos investimentos na Amazônia. A China substitui a mensagem usual por uma declaração gravada pelo próprio Xi Jinping propondo uma “parceria estratégica permanente”. Mais de 90 países se manifestaram em dois dias e Lula, convidado para a COP 27, para Doha e para o G20, já é tratado como o grande estadista que o mundo inteiro reconhece.
Mas o pesadelo está longe de terminado. O enfático posicionamento internacional demoveu eventuais ímpetos golpistas das Forças Armadas, mas não dissolve as hordas de fanáticos, de grandes empresários a estudantes de colégios de ricos, que não faz sentido continuar chamando de “elite”, que seguem fazendo juras de ódio e morte.
Tomar posse e governar será ainda mais duro do que ser eleito e isso Lula não poderá fazer sozinho apesar da sua proverbial habilidade e capacidade de conciliação. Teremos que aprender com as torcidas organizadas a garantir o direito de ir e vir, de sorrir e respirar, de reconstruir nosso país.
sobre o autor
Carlos Alberto Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.