Eduardo Pierrotti Rossetti: Quais foram seus sentimentos, tanto do ponto de vista profissional como pessoal, ao assistir aos acontecimentos ocorridos em Brasília no dia 8 de janeiro?
Sylvia Ficher: Não seria capaz de separar os sentimentos da pessoa e da profissional diante de tamanha violência. Violência que vai muito além de questões arquitetônicas e patrimoniais, uma vez que fere o próprio coração do país ao ferir Brasília. Esta cidade não por acaso alcunhada Capital da Esperança, obra magistral do povo brasileiro, internacionalmente reconhecida como Patrimônio da Humanidade.
EPR: Como você classifica esses acontecimentos? Ação terrorista? Ato golpista? Vandalismo? Ou isso é irrelevante?
SF: Nada do que ocorreu é irrelevante. Muito pelo contrário, foram acontecimentos estarrecedores da mais alta e negativa relevância. Contudo, por mais que me entristeçam e me afetem em minha condição de cidadania, enquanto arquiteta e conservacionista devo me restringir à avaliação apenas dos danos materiais causados. Cabe ao judiciário determinar a dimensão criminosa de tais atos de vandalismo e ao executivo e ao legislativo a sua dimensão política.
Apesar da incredulidade, da revulsão mesmo, causada diante de tamanha insensatez, fugiria à minha competência me manifestar sobre a tipificação legal dos fatos ocorridos. Seriam opiniões açodadas, puramente emocionais, meramente subjetivas, porém sem maior valor jurídico.
EPR: Qual foi sua sensação ao final, no desfecho do dia 8 de janeiro? Em relação aos espaços cívicos e aos palácios?
SF: Apenas um pequeno e mesquinho raciocínio matemático. O Rio de Janeiro, fundado em 1565, com um passado de 458 anos, perdeu de maneira inaceitável e indesculpável sua mais importante instituição cultural, o Museu Nacional. Brasília tem meros 63 anos, um sétimo da história carioca. Medindo-se pela régua do tempo, proporcionalmente as trágicas perdas dessas duas capitais brasileiras são equivalentes.
EPR: Em sua opinião, a arquitetura dos palácios resistiu bem?
SF: Arquitetura não resiste bem ou mal, não segue a lógica de bunkers, os quais devem ser avaliados por sua maior ou menor resistência a ataques. Mesmo porque cidades muradas são tomadas, baluartes são atacados, não há fortalezas inexpugnáveis. A história mostra que nada é inexpugnável. Daí, atribuir a responsabilidade pelo fácil acesso dos vândalos e pela extensão da destruição à arquitetura – e não a ações defensivas de outra ordem – seria, no mínimo, um raciocínio irresponsável e simplório.
EPR: Como você avalia os danos causados na Praça dos Três Poderes e às suas edificações? Os danos à arquitetura são passiveis de serem reabilitados ou há perdas irreparáveis?
SF: Do ponto de vista da conservação no que diz respeito às edificações em si – ou seja, as sedes do Congresso, do Supremo e do Planalto –, as dificuldades são grandes, porém não intransponíveis. Afora o custo excessivo, é lógico. Como são edificações de elevado valor simbólico, tanto cívica como arquitetonicamente, estão protegidas por tombamento pelo Iphan e muito bem documentadas.
Felizmente, todas elas têm setores técnicos de arquitetura dedicados à sua manutenção, contando com quadros profissionais com apurada qualificação. Em consequência, obras de reparação têm obtido resultados rápidos, tanto que os poderes que abrigam já estão funcionando com surpreendente regularidade.
EPR: Os organismos responsáveis pela restauração dos bens que integram os acervos dos palácios estão qualificados para um trabalho desta envergadura?
SF: Qualificados, estão, a questão é saber se serão suficientes no que se refere em especial aos acervos mobiliários e artísticos, os quais incluem obras de grande relevância, em grande maioria insubstituíveis. Aí devem entrar em ação os técnicos do campo da restauração museológica propriamente.
Sem dúvida, diante da escala do vandalismo talvez venha a ser necessário recorrer ao apoio de instituições estrangeiras e/ou internacionais, como a Unesco, o Conselho Internacional de Museus – Icom ou o Smithsonian Institution, em Washington.
EPR: Dado o caráter único e o tombamento, quais são suas considerações sobre possíveis ações de proteção dos palácios?
SF: Conforme comentado, medidas de proteção contra atentados da ordem daqueles ocorridos no dia 8 não se resolvem arquitetonicamente. Afinal, os espelhos d'água do Congresso e do Planalto servem mais por seu efeito moral do que como barreiras efetivas.
O conjunto monumental constituído pela Esplanada dos Ministérios e pela Praça dos Três Poderes é fruto de uma concepção particular. Na perspectiva da época em que foi escolhido o plano piloto da nova Capital Federal, não haveria problemas de segurança, porque a sociedade se modificaria em função da proposta urbanística, a qual contribuiria para avanços no tecido social. Na prática, isso não ocorreu... Como constatou o próprio autor do projeto, Lúcio Costa: “Nós estávamos todos mais ou menos iludidos, imaginando que a renovação arquitetônica e a renovação social era uma coisa só, mas a realidade mostra que as coisas não são tão simples assim”.
EPR: Como tem sido a atuação do Iphan para encarar as consequências dos ataques sofridos pelos palácios?
SF: Aqui sou suspeita, pois estou satisfeitíssima com o regresso de meu colega e dileto amigo Andrey Schlee para a Diretoria do Patrimônio Material. Dada a sua competência como arquiteto, historiador e preservacionista e, principalmente, o ser humano excepcional que é. Durante seu período anterior na Depam teve uma influência renovadora no quase secular Iphan, que espero agora possa ser retomada.
Tenho certeza que, mais uma vez, os técnicos do Iphan saberão responder às condições extremas a que foram sujeitos bens tão significativos do patrimônio nacional. Por outro lado, não nos esqueçamos de que os fatos a que estamos nos referindo ocorreram após uma única semana da posse de uma nova administração federal. E que a indicação da nova diretoria do Iphan foi feita dois dias depois, na semana seguinte a esses fatos, sua posse formal prevista para o dia 31 de janeiro.
sobre o autor
Eduardo Pierrotti Rossetti é arquiteto, professor e pesquisador da FAU UnB. Atualmente faz pós-doutorado no Propar/UFRGS, sob supervisão de Carlos Eduardo Dias Comas.