Essa coisa de tradução às vezes cansa: outro dia encontrei alguém reclamando que o título Ao farol (“To the Lighthouse”), da Virginia Woolf, é "muito vago", e melhor seria usar "passeio ao farol".
Suspiro... (na verdade, vários suspiros...)
O farol não é só nem principalmente o farol da ilha que se enxerga da casa do casal Ramsay. É sobretudo a grande, centralíssima, ponderosíssima metáfora do papel da senhora Ramsay como o “farol” da família, que ilumina, orienta e vitaliza as relações entre seus integrantes.
O “to” em To the Lighthouse nada tem de vago: é denso e até pode ser ambíguo – é não só nem principalmente uma ida de bote (um “passeio”) até o farol físico, mas sobretudo uma dedicatória!
Como diz Virginia Woolf, o livro nem seria propriamente um romance: ela diz que gostaria de chamá-lo de elegia, uma homenagem póstuma à sua finada mãe, e é a ela que a autora o dedica.
Como já disseram, “no dictionary can classify the most famous ‘to’ in twentieth-century literature: the title of To the Lighthouse, with its specially laden and layered meanings of orientation and dedication, energy and elegy” (1).
(Por isso também gosto da capa da edição da L&PM, em que o alterego de Virginia Woolf contempla o farol, em vez de apresentar algum barquinho indicando um aplainado passeio ao farol (2). E a contemplação entre nuvens pesadas, águas agitadas, rajadas de vento – quem leu o livro bem sabe quantos conflitos, quantas questões se agitam dentro e em torno da família, e o “farol” ali, sempre firme, forte e fiel, como dizem).
É até por essas e outras que certa vez meio que me exasperei em uma entrevista em que uma das entrevistadoras insistia freneticamente na importância como que fundadora [!] do que ela chamava de “crítica” – e tão freneticamente insistia, até mesmo invocando o mais perfunctório comentário de algum leitor (“aain, não gostei...”), e tanto me exasperei que fui curta e grossa: “bom, aí o problema é dele; meu problema é com a obra, a responsabilidade diante dela”. Ela fez uma cara... mas, no fundo, para mim, é isso mesmo.
nota
1
FOWLER, Rowena. Virginia Woolf: Lexicographer. English Language Notes, v. 39, n. 3, Durham (EUA), mar. 2002, p. 54-70. Disponível em pdf na página web da autora no website da Universidade de Oxford: <https://bit.ly/3mO1UZe>.
2
WOOLF, Virginia. Ao farol. Tradução de Denise Bottmann. Porto Alegre, L&PM, 2013.
sobre a autora
Denise Bottmann é graduada em História pela Universidade Federal do Paraná e mestre em teoria da história. Foi docente de filosofia da Unicamp. É autora de Padrões explicativos na historiografia brasileira (Aos Quatro Ventos, 1997) e vários artigos de crítica e teoria historiográfica em revistas especializadas. Atua como tradutora de inglês, francês e italiano desde 1985, nas áreas de ciências humanas, história da arte, teoria e história literária.