Gosto de escrever artigos sobre arquitetura e cidade, que analisam aspetos críticos, técnicos, sociais e culturais dos objetos de estudo e trabalho da nossa profissão. Porém, uma crescente imobilidade tomou conta de mim durante os últimos anos. A barbárie e a brutalidade que tomaram conta do país desde o golpe parlamentar de 2016 – que permitiram a ascensão da extrema direita e a implementação de um processo de inimaginável atraso e decadência – diminuíram o poder dos argumentos tendentes a evoluir os aspectos culturais, civilizatórios e de urbanidade que propõe nosso campo de conhecimento e atuação. A gravidade do processo que conduziu ao governo fascista, com apoio explícito de parte do judiciário, da minoria dominante e da mídia corporativa, transformou os principais assuntos do nosso importante debate disciplinar e profissional em questões insignificantes perante as atrocidades apresentadas cotidianamente.
A divisão da sociedade e o retrocesso experimentado em todos os campos de atuação é avassalador, deixando marcas profundas que exigirão um processo de reconstrução e reeducação, assim como de combate à difusão do fascismo através das redes de notícias falsas.
No campo da arquitetura e urbanismo, a ostentação elitista e megalomaníaca nos edifícios de famoso balneário catarinense, e a proliferação de cafonice e vulgaridade numa reconhecida rede de lojas representam, talvez, os símbolos e “legados” mais significativos do período obscurantista que estamos tentando superar.
Um dos desafios é começar de novo, tentando recuperar os anos perdidos pela eliminação dos programas de governo que favoreceram o desenvolvimento social, econômico e cultural.
O recomeço oferece a oportunidade de avaliar criticamente os resultados das experiências realizadas, especialmente no campo que nos concerne da moradia popular.
O programa Minha Casa Minha Vida, destinado a resolver o problema habitacional e, ao mesmo tempo, reativar a economia através do impulso da construção civil, colocou um problema estritamente social no contexto das leis do “mercado”. O resultado derivou nas justificadas críticas: implantações afastadas dos centros urbanos e locais de trabalho, tipologias repetidas para regiões, climas e culturas diferentes, ausência de usos mistos, pobreza de ideias nos projetos urbanísticos e arquitetônicos, propostas “engessadas” (sem possibilidades de adaptação e crescimento).
Enfrentar o problema apenas pela visão do “objeto casa” – em vez de tentar concepções amplas da complexa circunstância da habitação social no nosso país – limita outras opções, especialmente destinadas a valorizar as cidades mediante a reconstituição dos tecidos urbanos, levando em conta que a moradia e seus usos complementares fazem parte essencial da configuração dos mesmos e são manifestações da cultura popular. Considerar o consumo de energias limpas e renováveis, assim como processos sustentáveis de produção atrelados a sistemas de infraestrutura e saneamento, são assuntos inerentes à preservação das condições ambientais.
A avaliação das construções vazias ou subutilizadas nos centros das cidades para destinar a habitação popular e usos complementares (reativando espaços urbanos degradados e valorizando centros históricos), o aluguel social, e a urbanização e dignificação das extensas periferias e favelas das grandes cidades através da Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social – Athis, prevista na lei n. 11.888/2008, são assuntos amplamente debatidos e de necessária e urgente implementação.
Começar de novo, desprovidos de ressentimentos, com espírito participativo e solidário para contribuir com os conhecimentos profissionais que nos competem, é o desafio e a oportunidade que este tempo nos oferece para colocar a profissão à serviço das pessoas mais carentes e superar a consciência elitista remanescente na sociedade e em grande parte dos nossos colegas.
sobre o autor
Roberto Ghione, arquiteto, especializado em crítica arquitetônica, preservação do patrimônio e planejamento urbano. Presidente do IAB/PE 2017-2019. Titular do escritório Vera Pires Roberto Ghione Arquitetos Associados.