O Brasil atual é um excelente campo para a compreensão do poder e do alcance da ação da chamada guerra híbrida.
Sem recorrer aos vários analistas e cientistas políticos que tem se dedicado ao tema entre nós, basta ficar com a definição mais simples, registrada na Wikipedia, de um processo que “que mescla táticas de guerra política, guerra convencional, guerra irregular, e ciberguerra com outros métodos de influência, tais como desinformação, diplomacia, lawfare e intervenção eleitoral externa”.
Nenhum destes fatores faltou no verdadeiro cerco à expressão da vontade popular nos últimos sete anos, desde o impeachment claramente fraudulento de Dilma Roussef até os ataques diários ao governo Lula.
Basta uma leitura minimamente atenta da própria imprensa corporativa para avaliar que, longe de apaziguada com a eleição de um dirigente experiente e moderado como Lula, a guerra híbrida do grande capital contra qualquer política de defesa de direitos sociais e de soberania nacional não cessou desde a posse e não dá mostras de arrefecimento.
O presidente voltou de sua viagem a Portugal com um saldo de compromissos de investimento 5,7 bilhões de euros (30 bilhões de reais) de empresas de tecnologia portuguesas, mas o destaque de nossa imprensa foi para o protesto de doze deputados do Chega, partido de extrema direita. Como se houvesse alguma surpresa no fato dos discípulos lusitanos de Steve Bannon protestarem contra Lula!
Ficou em segundo plano, por aqui, a reprimenda do presidente da Assembleia Nacional portuguesa, aplaudida de pé pelos restantes 218 deputados e deputadas.
Sua passagem pela Espanha mereceu destaque de capa no El País, o mais importante jornal de língua hispana, tanto por sua posição em defesa do fim da guerra na Ucrânia, quanto pelo fato de que aquele país assume a presidência rotativa da União Europeia no próximo semestre e isso oferece uma oportunidade para a finalização do acordo comercial União Europeia – Mercosul.
Nos últimos dias fica difícil escolher o protagonista da guerra híbrida. A rede CNN desponta com certo favoritismo, depois do vazamento dos vídeos que levaram à demissão do ministro chefe do GSI e à articulação de redes sociais e parlamentares bolsonaristas empenhados no conto de fadas de que a culpa do 8 de janeiro é do governo Lula.
Nas redes sociais bem-humoradas não se descarta que, num próximo capítulo, tentem nos explicar que na verdade foi a Janja que trouxe as joias das Arábias, depois que Lula vendeu as refinarias a preço de banana.
A CNN é franquia da rede norte americana, implantada no Brasil por Rubens Menin, banqueiro, financiador de futebol e dono da MRV, uma empresa construtora que em 2012 foi considerada a maior do país, sobretudo por causa do Programa Minha Casa Minha Vida. Pois é...
Mas o grande destaque da CNN foi a divulgação de notícia falsificada da empresa Antonov, fabricante ucraniana de aviões, encaminhada pelo Secretario de Negócios Internacionais do governo paulista, Lucas Ferraz. Segundo a CNN a empresa teria desistido da intenção de investir 50 bilhões de dólares [sic] numa fábrica no estado de São Paulo em função do posicionamento de Lula quanto à guerra na Ucrânia.
Bastaria a qualquer jornalista verificar que o PIB da Ucrânia é de 200 bilhões de dólares para que a suposta notícia caísse no devido ridículo, uma vez que está longe de ser crível que uma única empresa sequer pense em investir 25% do PIB de seu país no meio de uma guerra que vem destruindo toda a infraestrutura nacional.
Mas foi necessário que a própria Antonov desmentisse a notícia para um envergonhado “não foi bem assim” da rede.
Como se isso fosse pouco para uma semana, ainda tivemos a pantomima da Agrishow em Ribeirão Preto, a capital paulista do agrobusiness, em que o presidente do evento, quebrando um protocolo de todas as edições anteriores, resolveu convidar Bolsonaro para estar presente na abertura e mandou mensagem “desconvidando” o ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro.
A imprensa destacou bastante o que considerou equívoco do governo Lula ao ameaçar retirar o patrocínio do Banco do Brasil ao evento, assim como justificou a posição anti Lula do setor, sobretudo em função do MST e da questão das terras indígenas.
Também deu destaque à recepção calorosa a Bolsonaro e Tarcísio, mas não achou relevante informar que há um racha significativo entre as lideranças empresariais do setor, com memes contra algumas das mais tradicionais (Abag, Abimac, Anda, Faesp, SRB) distribuídos nas redes sociais bolsonaristas.
Ainda tivemos o envio do Projeto de Lei contra as fakenews, com direito a vários jabutis e à escandalosa interferência dos gigantes Facebook e Google. A votação foi adiada para não se sabe quando e nem a liberação de emendas adiantou.
Mas o que pegou mesmo nas redes, mobilizando uma batalha entre esquerda fofa e bolsonaristas, foi o caso de fake amor da capivara Filó.
sobre o autor
Carlos Alberto Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.