Marcelo Tramontano: Em seus textos, você escreve, principalmente, sobre a relação entre o seu trabalho e o pensamento europeu, de autores como Mallarmé e Lautréamont. No entanto, sendo japonês, fazendo sua arquitetura no Japão, para japoneses, estou certo de que há, também, algo fortemente japonês na arquitetura que você produz: que não se referencia necessariamente à cultura tradicional, mas japonês em todo caso. Você poderia falar um pouco sobre as relações que eventualmente reconhece entre o seu trabalho e a cultura japonesa?
Atsushi Kitagawara: Muitas pessoas me perguntam isto. Meu pai é um pesquisador da literatura japonesa, um especialista no assunto. É também poeta de Tanka [Uma das modalidades de poesia japonesa, constituída por 31 sílabas, divididas em 5 corpos (versos): 5-7-5-7-7]. Ele pesquisa principalmente sobre Manyoshu [Coletânea de, aproximadamente, 4500 poemas de vários tipos, criados ao longo de 350 anos (400d.C. a 750d.C.) reunidos em 20 volumes], aquela coletânea organizada durante os períodos Nara e Heian [Período Nara: 710 d.C. - 794 d.C. Período Heian: 794 d.C. - 1185 d.C.]. Ou seja, ele estuda a cultura japonesa muito antiga, e é discípulo de Shinobu Orikuchi, também pesquisador da literatura japonesa, que deixou, provavelmente, a maior contribuição no campo da História do Japão. Enfim, desde pequeno vivi imerso em um ambiente de estudiosos muito fortes, cercado de literatura japonesa. De certa forma, é possível que a cultura japonesa esteja muito mais enraizada em mim do que na maioria dos japoneses em geral. Acho, no entanto, muito perigoso fazer uma relação direta entre esta espécie de essência da cultura japonesa e a Arquitetura que faço. Isto porque esta cultura é como a minha alma, e, por isso, evito relacioná-la diretamente com o meu trabalho. Penso nesta relação de maneira indireta. Como você disse, quando projeto tenho como referência artistas europeus de quem gosto muito, por exemplo Mallarmé e André Breton, mas, no fundo, tenho raízes na cultura japonesa. No meu trabalho, estas raízes culturais se vêem retrabalhadas pela metodologia desses artistas europeus, como se passassem por uma espécie de filtro.
MT: Esta é, em fim de contas, uma prerrogativa do Japão, que possui uma forte cultura tradicional, ao mesmo tempo em que se volta para as informações do ocidente... O seu trabalho se situaria neste limite muitas vezes impreciso?
AK: Meu trabalho não deve ser visto nem como ocidental, nem como japonês, ainda que possa filiar-se a ambos universos, em certo sentido. Pelo menos, acho que é assim que as pessoas o vêem. Quero citar-lhe duas características interessantes da cultura japonesa. A primeira é a ausência de centralidade. Tomando a cidade de Tokyo como exemplo, vê-se o Palácio Imperial no seu centro. Trata-se, na verdade, de uma floresta, quase sem nenhum edifício alto. Um plano. Um black-box, em cujo interior não sabemos o que acontece. Um grande black-box. As principais cidades do Japão são assim. Em Kyoto, o Palácio Imperial fica também no centro da cidade. Essa característica das cidades japonesas, com uma estrutura em cujo centro situa-se uma ficção, um buraco, um void, foi apontada por Roland Barthes há uns dez anos atrás, quando ele veio ao Japão. Era algo que nós, japoneses, sabíamos havia muito tempo: no Japão, o centro da cidade é um vazio, mas Barthes enxergou aí uma possível característica de toda a cultura japonesa, uma cultura do centro vazio. À sua volta, aparecem várias coisas e acontecimentos, mas ninguém sabe do centro. É um mundo de absoluto vazio, nada (Mu) [Um dos vários kanji japoneses usados para expressar a noção de vazio]. Essa teoria se aplica perfeitamente à maneira como faço meus edifícios. Por isso é que eu disse anteriormente que eles não são nem ocidentais nem japoneses, ou podem ser as duas coisas. A outra característica da cultura japonesa é a reflexão. Para falar de reflexão, acho conveniente exemplificar com o Sol e a Lua. Sou contra a separação absoluta e dualista entre Ocidente e Oriente, mas, se os separássemos, o Ocidente seria o Sol, por emanar energia própria e iluminar, oferecer energia, enfim, conceber algo de si. A Lua, ao contrário, reflete a luz do Sol. Através do reflexo, a Lua emana um pouco de energia e um pouco de informação. Penso que o Japão e sua cultura são como a Lua, e que, nesta medida, a cultura ocidental reflete-se no Japão. Talvez o Japão seja somente um espelho ou, então, seja como um metal, ou uma ‘coisa’, que reflete algo. E essa ‘coisa’ talvez seja um mundo obscuro e indefinido. Se no centro da cultura japonesa existe um vazio, dentro dele jamais entraria a cultura ocidental. Ela é refletida, mas na superfície. A face ocidentalizada da pintura, da escultura, da arquitetura, e até mesmo da política e da economia japonesas, só existem de fato de forma superficial. São reflexos. Muitas pessoas já disseram isso, que o Japão tem uma cultura de reflexão. Talvez, se essas duas características forem levadas em consideração, o meu trabalho possa ser melhor compreendido.