Nanda Eskes: E em relação a este imaginário o que o Brasil veio a trazer a você?
Christian de Portzamparc: Eu tinha do Brasil já essa idéia de arquitetura dos anos 50, 60 que é muito, muito bonita, e que eu trazia na memória desde quando eu tinha quinze anos. Quando a presenciei de fato, retomei um interesse e um diálogo com este período, o que foi muito importante. A relação com a paisagem, com o território, com a topografia era muito significativa, um bom contraponto em relação à situação européia, carregada de história e urbanidade. Outra coisa que contou foi a cor. Eu sempre trabalhei a cor no desenho e na pintura, mas foi a partir deste momento que isto virou algo de mais natural. Difícil falar mais do que isso, mas quando eu fiz o projeto da Disney é evidente que estava impregnado da paisagem da Mata Atlântica e do Rio de Janeiro.
NE: As cidades modernas, como São Paulo e Rio de Janeiro, trouxeram alguma coisa para sua arquitetura?
CdeP: O Brasil tem uma enorme vitalidade urbana, uma arquitetura e um urbanismo não ordenados, muitas vezes irregulares e muito, muito contrastados. Tem uma poética contrastante, onde entrevemos aspectos vernaculares e democráticos. Existe algo que faz parte da vida do Brasil e que nos abre os olhos em relação à Europa – a integração das diferenças. Percebemos isto em São Paulo, entre os diferentes bairros, entre as pequenas casas e pequenas torres por todos os lugares. Contraste que observamos em Recife, Salvador, Brasília, Belo Horizonte, Rio, São Paulo... – e eu nem conheço o sul [ne: hoje ele já conhece]. São mundos diferentes, que estão reunidos por alguma coisa comum: a língua, a cor, o espírito. Não é uma experiência que se reduz à arquitetura, mas claramente este registro imprime uma marca muito pessoal, que tem repercussão na arquitetura. É completo, profundo e pessoal. Não podemos fazer disto uma experiência do tipo “eu sou um arquiteto, então eu vou até lá, eu vejo…”. Não me sinto numa viajem de estudos quando estou no Brasil. Contudo, muitas coisas que conheci me interessaram e as fotografei. Dentre as coisas que mencionei, o que é interessante de ser visto em comparação à Europa é a grande arquitetura dos anos cinqüenta, mas que tem traços um pouco dissolvidos atualmente. É patético de se dizer, mas houve de algum modo uma decadência mercantilista que pode ter trazido uma coloração pós-moderna, uma arquitetura fácil que salienta um tipo de americanização decadente em muitos domínios, inclusive na arquitetura.
Outra coisa que me marcou quando trabalhei no projeto urbano para Santo André foi constatar que a noção de urbanismo havia desaparecido. É muito marcante. Você percebe que as cidades do Rio e São Paulo ainda constituem planos de urbanismo antes da guerra, mas que depois o desenvolvimento tornou-se um tipo de explosão. Existe um plano de urbanismo para a Barra da Tijuca no Rio de Janeiro que é interessante, aonde vemos uma mistura de zooning muito funcional, constituindo uma cidade fechada, de ilhas isoladas por auto-estradas e um centro comercial. Mas vemos que o funcionalismo na realidade conforma uma cidade da segregação social. O zooning é adequado para uma sociedade capitalista anticívica. Curiosamente, Teresa Caldeira – intelectual que abordou a Los Angeles dos muros – é brasileira, e não é surpreendente que tenha destacado o real perigo do urbanismo segregativo ou do não-urbanismo segregativo. De qualquer forma, o plano da Barra da Tijuca era um “urbanismo”, “fruto” de uma vontade. Mas há um tipo de inconsciência de toda a época.
Na idéia da rua persiste um tipo de universalidade democrática. O pobre e o rico, o nativo e o estrangeiro passam na mesma rua. A partir do momento que você abole a rua, coloca um portão que só abre com um cartão eletrônico..., lógico que passamos a viver em um mundo a la Mad Max e que por detrás do muro e do portão, todos vão se esconder e se armar contra o terrorismo urbano… Então é algo que eu já dizia, mas que senti mais no Brasil do que aqui. Tal realidade também é verdadeira na periferia de Paris, mas no Brasil ela se exacerba a tal ponto que as pessoas deixam São Paulo e vão para Alphaville, uma cidade movida a cartão eletrônico. São bairros residenciais aonde as famílias são obrigadas a ter três carros e onde as crianças estão em um mundo ultraprotegido pois ali somente outras crianças residentes brincam e vão à escola.
NE: Então seria esta uma das heranças do movimento moderno para a sociedade brasileira ?
CdeP: Herança paradoxal. Mas se eu disser que é uma herança em movimento, vou fazer arrepiar os cabelos de um monte de gente sincera e honesta que dirá que é uma vergonha criticar o movimento moderno sob este pretexto. Por parece uma atitude oportunista. O movimento moderno sonhava com um território livre para todos, inclusive os gramados e arvoredos para que as pessoas pudessem recrear o corpo e o espírito. Tal como estava escrito nos livros de Le Corbusier, era preciso libertar as pessoas das ruas-corredor. A idéia e a ambição eram generosas, mas eu suponho que para abrir gramados e arvoredos a todos pressupõe uma sociedade pacífica que não existe ou uma outra extremamente policiada, como em alguns paises aonde tudo é controlado, mesmo o papel que você joga no chão. Esta sociedade não existe, fato negligenciado por Le Corbusier que, no fundo, não tinha nenhuma idéia das questões sociais. Ele concebia a sociedade de forma extremamente restrita e esquemática: a produção de habitações, de automóveis, o número de pessoas a abrigar… A realidade nos mostrou que a sociedade é muito mais complexa e difícil.
No Brasil temos este forte contraste entre a favela e a residência luxuosa situadas lado a lado e fica difícil evitar a construção de muros. Existe a propriedade privada e lá é necessário um limite físico. Mas quando os moradores ultrapassam os muros de suas casas, vão ter que conviver com as outras pessoas. Estamos falando aqui de um tipo de lei. A rua “é” uma lei. Le Corbusier falava sobre a lei do lait de chaux para Paris [ne: Le Corbusier propunha, após derrubar os bairros insalubres de Paris, que fossem construídas no lugar edificações puras e brancas, utilizando leite de caule branco que já usava em seus projetos, resultando em uma situação urbana mais higiênica e com um melhor proveito da luz na cidade], mas e eu discordo, penso que a lei importante é mesmo a da rua, afinal a rua é universal. Como se diz, todos os caminhos levam a Roma. Na rua você pode ser preso pela polícia, mas na rua você também pode fugir da policia! Há uma universalidade, todo mundo esta lá com o mesmo status, os pobres e os ricos se vêem, os abastados passam nas ruas e se deparam com as pessoas que mendigam. É muito importante pois se você não têm a realidade da rua, só temos os desencontros. Temos então a situação onde se passa diretamente de um helicóptero para um avião supersônico, depois para uma estação de esporte de inverno, onde só se encontram milhardários… A falta de encontros conforma mundos paranóicos, onde cada lado vai enviar para bombas, mísseis, etc, para o outro. No seio de uma mesma cidade você tem diferenças tão grandes como as existentes entre o Afeganistão e Nova York. A trama da rua é ao menos um terreno de entendimento obrigatório. É um problema muito grande, que observamos também em Los Angeles, mas que no Brasil é muito mais impactante.
O Brasil têm um lado encantador, mas também existe este outro lado. Não devíamos fazer um inferno, mas ele está presente e é uma lição para o mundo inteiro. Uma lição negativa, que assinala um problema que está presente em todos os lugares, na Ásia, na Europa, na América. Evidentemente, o estrangeiro sente com muito mais acuidade, afinal enxergamos com mais profundidade as coisas em outros lugares. Eu não estou habituado a atravessar os bairros perigosos na periferia de Paris. Mas se o fizesse todas as semanas, eu teria um discurso para Paris, sinalizaria que existem bairros aonde os policiais não ousam entrar, etc. Nós temos na França problemas que se parecem com os do Brasil, ou que vão se parecer se não dedicarmos uma maior atenção.
NE: O que você achou do número da revista Óculum que foi publicado no Brasil sobre você?
CdeP: Foi um excelente número, que foi muito útil a nós. Como ela era também em francês, a distribuímos bastante. Foi uma excelente publicação e eu bem que gostaria ter alguns exemplares a mais.