Nanda Eskes: Você ainda tem sonhos?
Christian de Portzamparc: Eu sempre quis muito fazer música. Martim (artista plástico do escritório) me deu um piano e me disse que eu deveria recomeçar. A música é uma energia. Mas eu sempre estou interessado numa pergunta: “além de como sonhamos, como pensamos em arquitetura?” Temos idéias que não estão no programa, que não são frases, que não são apenas linguagem, mesmo quando a comunicamos. É algo que se passa tanto na arquitetura como na música. Trata-se de uma capacidade de dizer ou comunicar coisas sem a linguagem. Fascina-me ver o que acontece quando cessa a linguagem. Mesmo assim, toda a tradição ocidental insiste em dizer que o pensamento só se passa através da linguagem. Eu dizia isso a Braudrillard há um ano e ele demonstrou dificuldade em me entender.
NE: Você é um intuitivo?
CdeP: A concepção do espaço arquitetônico vai além da intuição. O espaço, as formas, certos sons como a música – estamos em interação com tudo isto. Estabelecemos comunicação com os outros e com os lugares fazendo um sinal, mostrando uma cor, da mesma maneira que comunicamos com a palavra. Esta maneira de se comunicar, que é espacial e física, é, ao mesmo tempo, a mais animal e a mais sutil, algo muito importante para a arquitetura. No entanto, para se pensar a arquitetura, precisamos também da fala e outras linguagens complicadas, caso da informática, linguagens que nos permitam traduzir idéias em coisas visíveis, em espacialidades. Eu creio que essa sensibilidade mais primitiva do espaço se perderá por completo. Não estou muito otimista quanto a isso, porque a linguagem, cada vez mais performática, vai se empobrecendo. Teremos um inglês universal bastante pobre e a prevalência da “imagem”, que não é a mesma coisa que “espaço”. Talvez nossa única salvação seja a exploração talentosa das imagens por parte dos videomakers e cineastas de gênio. Caso contrário, as imagens serão cada vez mais refratárias – com elas não podemos dialogar, trocar, praticar, como acontece quando você entra num prédio e passa por uma sucessão de experiências, você senta aqui, você vai para lá, você se surpreende, fica feliz, vai até a sombra, visita... A imagem já traz em si todo este processo, ela se torna um anúncio para consumação, ela converte-se em algo cultuado: “olhem o quanto sou formidável!” A imagem constitui um mundo paralelo, é uma pulsão atraente para nos obrigar a dizer "sim", que oblitera nossa capacidade de pensar, refletir.
Certamente viajar é muito melhor do que olhar imagens. É necessária a energia para sair da inércia, a interação é imensa, você pensa, reage, revolta-se, fica feliz. Talvez possamos dizer que as viagens e os artistas nos salvarão do mundo das imagens. O urbanismo, por exemplo, tornou-se algo praticamente impossível. A eficiência da circulação do dinheiro, dos homens e das mercadorias, o tempo cada vez mais comprimido, os fluxos financeiros, a informação, a internet – tudo isso tende a substituir o espaço. Alguns dizem que isso é formidável, é um novo espaço virtual. Não acho nada formidável: temos corpos físicos e vivemos num espaço real que vai ficar cada vez mais congestionado, mais complicado.
Os privilegiados vão se refugiar em áreas mais tranqüilas, na beira de algum lago charmoso, mas uma grande parte da população viverá no espaço inadequado porque já não não faz mais parte da equação sócio-econômica. O retorno de um investimento urbano acontece depois de dez anos, é um período muito longo, já não entra mais nos fluxos financeiros que só pensa retornos após quatro anos. É impressionante constatar que na ocasião em que Alfred Agache foi convidado para fazer o plano urbanístico da cidade do Rio de Janeiro, não se falava em rentabilidade após quatro ou dez anos. Apenas se dizia que o plano da capital do Brasil estava sendo realizado. Hoje a cidade já não conta com um grande projeto urbano para dar continuidade ao anterior. Existem apenas projetos para a revitalização de bairros, alargamentos. Não sabemos mais como controlar o todo porque prevalecem os investimentos privados. Não podemos controlar o tempo. Não podemos decidir sobre o dinheiro alheio. Trata-se de uma mudança que é resultante do desenvolvimento extraordinariamente acelerado da economia e da técnica. Temos, portanto, uma nova relação com o espaço, onde os arquitetos e a arquitetura são chamados para projetarem lugares fictícios, imagens que vão localmente levantar a moral. A grande maioria da arquitetura serve somente para a eficiência comercial e isso é um grande problema.
Eu não sou ingênuo a ponto de achar que o mundo seja unificado, que existe uma formula para resolver os problemas em grande escala. Eu acredito que hoje a questão local seja muito importante também. Há cinqüenta anos tinha-se a convicção que se iria resolver industrialmente todos os problemas do mundo. Agora nós sabemos que essa idéia universal pode funcionar em outros sistemas – indústria, finanças, etc. A arquitetura e o sítio têm um lado arcaico bem local, que sempre possui uma lição para o amanhã. Somos uma série de tribos locais, mesmo partilhando das informações mundiais.