Antônio Agenor de Melo Barbosa: O senhor é um profissional que tem projetos de grande qualidade em diversas partes do Brasil mas, a meu ver, os seus projetos que mais se destacam estão situados no Rio de Janeiro, sobretudo em grandes áreas públicas. O senhor concorda com esta avaliação? Como observa e atua na cidade? Qual é a efetiva “presença” da cidade na sua atividade como um paisagista carioca?
Fernando Chacel: Sim, creio que você tem razão e eu concordo com a sua avaliação. Mas nos últimos anos eu tenho atuado não apenas em grandes áreas públicas, mas também em grandes áreas privadas no Rio de Janeiro. Isto devido a uma certa obrigatoriedade de trabalhos paisagísticos, muitas vezes considerados como medidas compensatórias em relação aos impactos ambientais. Assim, hoje em dia todos os grandes empreendimentos necessitam de estudos e de relatórios de impactos ambientais em decorrência de sua implantação. Creio que com isto surgiu uma nova maneira de atuar nesse campo que é o de entender que o projeto paisagístico em um determinado empreendimento, não deve estar limitado apenas a uma suposta satisfação estética ou a uma idéia simplificada de conforto climático, por exemplo. Nos últimos anos tenho atuado na restauração e na recuperação de ecossistemas, isto é: com um embasamento ecológico em nossos projetos paisagísticos.
Penso também que com relação a esta presença da cidade no meu trabalho, é algo que de fato ocorre, mas também creio que, já passados alguns anos de muito trabalho no Rio de Janeiro, tenho que ter uma noção também da presença e da contribuição real do meu trabalho para a cidade, sobretudo na região da Barra da Tijuca.
E aqui, se você me permite, eu menciono um pequeno trecho do meu livro sobre as minhas impressões a respeito da Barra da Tijuca que, creio, tem relação com a sua pergunta:
Conheci a Barra da Tijuca e a Baixada de Jacarepaguá em seu estado agreste. O mar, as dunas, as lagoas e seus brejos, os rios abrigados por suas matas ciliares, embasavam um relevo pontuado por monumentos naturais, com interflúvios florestados e encostas densamente revestidas por vegetação.
São recordações da minha infância, da minha juventude, dos tempos já vividos, que se perderam na velocidade do tempo que não para. Mas que ficaram guardadas em algum lugar da minha memória e que, provavelmente, são também responsáveis pelos projetos que desenvolvi naquela região.
Portanto esta é uma cidade de paisagens e foi a paisagem que norteou a ocupação. Os impedimentos fisiográficos, de certa forma, também condicionaram o crescimento da cidade, a despeito do desmonte de vários morros que marcavam e balizavam o início da ocupação como o Morro do Castelo e o Morro de Santo Antônio e etc. Então eu talvez possa entender como uma relação mesmo de simbiose entre estas duas presenças, digamos assim. Mas esta forte presença natural do Rio é a grande diferença de se trabalhar com a paisagem aqui e em outras cidades que não possuem estas características tão interessantes.
Aqui no Rio de Janeiro é a paisagem natural que faz a diferença em relação a outras cidades. E não bastasse tudo isto, ainda tivemos aqui a contribuição de artistas notáveis como Glaziou e Burle Marx. E é uma pena que a importante contribuição de Glaziou e o grande acervo de Roberto Burle Marx na cidade estejam tão mal conservados.
O sítio Burle Marx deveria ser, na minha opinião, uma espécie de núcleo da obra de Roberto Burle Marx no Rio de Janeiro. E que todos os projetos de Burle Marx no Rio de Janeiro fossem “pinças” deste acervo do sítio, configurando assim um conjunto de monumentos classificados da obra dele na cidade. Essa idéia eu já apresentei recentemente à Maria Elisa Costa, atual Presidente do IPHAN. Nos níveis intra-muros e extra-muros. Lembro-me também que Luiz Emygdio de Mello Filho, juntamente com Carlos Contreras, já havia mencionado a hipótese de tentar transformar o sítio em Patrimônio da Humanidade. E é sempre bom falar do grande mestre que foi Luiz Emygdio que todos consideravam o mais paisagista dos botânicos e o mais botânico dos paisagistas e das suas intenções justas e idéias consistentes.
AAMB: O Rio de Janeiro, por contingências históricas, foi uma cidade que em diversos momentos desde o século XVIII recebeu importantes artistas, arquitetos e paisagistas estrangeiros para trabalhar aqui nas mais diferentes propostas. Como vê esta presença estrangeira numa cidade que teve figuras do porte de: Glaziou, Grandjean de Montigny, Agache, Le Corbuiser e tantos outros? No momento a cidade também recebe a contribuição estrangeira do francês Christian de Portzamparc no Projeto da Cidade da Música. Qual é o legado destes artistas para a cidade e de que maneira o seu trabalho recebeu estas influências?
FC: Eu vejo com bons olhos estas influências estrangeiras e, dentro de certos limites, não acho que isto seja de maneira nenhuma ruim para a cidade. O que não posso aceitar é que se contrate um profissional apenas por ele ser estrangeiro deste ou daquele país. O profissional estrangeiro que vem trabalhar no Brasil tem que provar que é capaz, que é competente, que sabe trabalhar em equipe e que nos respeita. Talvez esteja saindo um pouco da resposta direta que você esperava mas, atualmente, eu tenho tido uma grande satisfação de trabalhar com o arquiteto francês Christian de Portzamparc no projeto paisagístico que desenvolvo para o Palácio da Música junto com ele.
Ele é um profissional de muita qualidade e de muita capacidade. Acho que ele está tendo um profundo respeito pela cidade, um verdadeiro ato de amor com o Rio através do bonito edifício que projetou. É um projeto de grande qualidade espacial e arquitetônica, sem dúvida. Deixará, com certeza, uma herança e uma marca positiva e de qualidade na cidade.
Da minha parte eu também acho que tenho procurado honrar com os meus projetos estas importantes heranças destes estrangeiros que você mencionou. De fato eu reconheço a importância da obra de Glaziou, Grandjean de Montigny, de Le Corbuiser e tantos outros que prestaram grandes serviços ao Rio de Janeiro; mas também considero que o legado de Burle Marx, o maior e mais completo artista brasileiro do seu tempo, tem uma importância que chega mesmo a transcender a obra dos mestres mencionados.
AAMB: Nos textos e nas imagens do seu livro “Paisagismo e Ecogênese”, publicado em 2001, são evidentes as suas preocupações relacionadas ao processo de urbanização da cidade e a grande degradação das condições ambientais, sobretudo em áreas da Barra da Tijuca onde o senhor atuou nos últimos anos. Como o senhor concilia, no seu trabalho prático, estas forças aparentemente antagônicas da urbanização e da preservação dos ecossistemas naturais da região da Barra da Tijuca cujo plano do urbanista Lúcio Costa já foi, há anos, completamente descaracterizado?
FC: O que eu posso te dizer é que este livro me deu um grande trabalho de fazer. Mas também me deu muito prazer e satisfação. Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, este livro não é um livro biográfico, ou autobiográfico, ele é um livro cujo foco é uma parte do meu trabalho que me interessa profundamente e que tem como centro de interesse algumas questões que venho estudando há alguns anos que dizem respeito ao processo ecogenético de reconstrução e de recuperação de ecossistemas.
E você tem razão ao falar das forças antagônicas da preservação e da urbanização. Elas sempre existiram e vão estar sempre em desacordo, creio. A urbanização tende a ser um processo dinâmico, a urbanização tem como premissa um forte dinamismo. Ela é agressiva em todos os sentidos até pela busca e pela conquista de terras para urbanizar.
A minha experiência mostra que o mesmo pai de família que quer toda a infra-estrutura urbana – fruto desta agressividade que mencionei – ao seu lado de forma bastante confortável como a residência, a escola, o hospital, também reclama da ausência de espaços livres públicos, de praças e parques. Pois os espaços livres urbanos são sempre ameaçados pela sua passividade, isto é: ele está ali, intocado e sem nada construído. E ao olhar agressivo e ativo da urbanização que quer sempre conquistar mais terras, estes espaços serão os primeiros a serem ameaçados pela agressividade deste processo, como já mencionei. É, de fato, uma luta muito difícil. Então creio que o caminho ideal é a utilização de um conceito mais conciliador destas forças antagônicas que é a idéia do desenvolvimento sustentável.
Eu acredito neste conceito e procuro cada vez mais utilizá-lo no meu trabalho como arquiteto paisagista. Mas ele também é um conceito muito recente que data de 1972, por ocasião do Congresso de Estocolmo, mas que aqui no Brasil só veio a ser discutido com mais rigor a partir de meados dos anos 80. O Congresso de Estocolmo foi uma conferência mundial de meio ambiente. No Brasil e gente pode pensar que a política ambiental só foi efetivamente instalada a partir de 1986.
Na Conferência de Estocolmo, dentre outras questões, foi deliberado que era importante preservar e conservar os últimos remanescentes das paisagens naturais, considerando-se essa atitude, como um pré-requisito dentro de um novo conceito de desenvolvimento. É com base nesta premissa que surge o arcabouço da idéia de desenvolvimento sustentável. E já em 1973 o Governo Federal do Brasil criou a Secretaria de Meio Ambiente cujo cargo de primeiro secretário foi entregue ao Dr. Paulo Nogueira Neto, um ilustre advogado ligado às questões ambientais no Brasil.
Mas aí entrou em cena a ditadura militar, implantada em 1964. Adepta ferrenha do desenvolvimentismo e da segurança nacional, não via com bons olhos as intenções conservacionistas e preservacionistas dos acordos assinados pelo Brasil na Conferência de Estocolmo. Entretanto, eu acredito que, a despeito destas adversidades, o Dr. Paulo Nogueira Neto conseguiu dotar o país de uma legislação ambiental sólida e abrangente, mas que só veio a ser consolidada em ações mais detalhadas a partir de 1986 como já mencionei.
AAMB: Fazer (boas) intervenções paisagísticas numa cidade como Rio de Janeiro me parece ser um desafio hercúleo até pelo alto valor simbólico do sítio físico onde a cidade se desenvolveu e também pela beleza exuberante da geografia da cidade. A impressionante dimensão dos maciços (da Tijuca e da Pedra Branca), as praias, as lagoas e a baía de Guanabara compõem um contexto natural que, a meu ver, torna-se difícil competir com a “mão do Criador”, digamos assim. Entretanto, se tomarmos como exemplo a obra de Burle Marx percebemos a genialidade deste homem nas suas intervenções paisagísticas na cidade. Qual a reflexão que o senhor pode fazer sobre isto?
FC: Talvez a palavra hercúlea não seja a que eu empregaria, de todo modo eu concordo que há sim um alto valor simbólico no sítio físico. E estas boas intervenções, para que sejam boas, devem estar sempre em consonância com esta paisagem extremamente forte. Não se concorre com a paisagem. Creio que devemos saber que não é só trabalhar na paisagem, mas que devemos trabalhar com a paisagem. Não se pode competir com o “Criador” como você diz na sua pergunta. E aí, por mais paradoxal que possa parecer, devo dizer que isto faz com que o arquiteto paisagista seja extremamente humilde no seu trabalho por que ele precisa dessa humildade, sobretudo se está trabalhando aqui no Rio de Janeiro com esta paisagem natural exuberante. Mas ao mesmo tempo este trabalho é uma criação dele e vai estar inserido na cidade. Então talvez ele deva trabalhar à semelhança do Criador, digamos assim.
Por que na verdade o jardim é um sub-produto da arquitetura e o paisagismo é um sub-produto da paisagem, você compreende? E quando eu falo sub-produto não há, certamente, um sentido pejorativo ou menor, entende? Talvez podemos trocar a palavra sub-produto por decorrência. Então o paisagismo é decorrência da paisagem. É isto que faz a diferença entre jardinismo e paisagismo, por exemplo.
Se você toma a obra do Burle no Aterro podemos perceber isto, pois ele criou uma paisagem cultural extraordinária, capaz de conversar com aquele magnífico cenário natural do qual fazem parte a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar. Isto é fantástico, pois o Aterro do Flamengo como paisagem cultural também agrega valor ao lugar.
AAMB: Como avalia a degradação constante dos espaços livres públicos na cidade e como vê o crescente processo de favelização nas encostas da cidade? O senhor vislumbra alguma perspectiva de melhoria deste quadro? Como o seu trabalho contribui para minimizar estes problemas?
FC: Aqui neste país muito se fala, mas pouco se faz. E a gente vê que as classes dominantes, infelizmente, não querem tomar conhecimento dos abismos sociais existentes no Brasil. Na realidade os governos só governam até certo ponto. Na minha avaliação quem governa os países são as classes dominantes e aqui em nosso país a classe dominante é extremamente egocêntrica, insensível e omissa diante das questões sociais. E isto contribui para o agravamento destas questões trazendo como corolário o desespero e a violência das classes excluídas.
Dessa forma acho que as favelas vão continuar sim, vão continuar por que não há um verdadeiro interesse em reverter esta situação. Como pode se admitir que um país como o Brasil ter um movimento dos sem terra (MST)? O que é isto? Como pode não haver terra para quem quer plantar neste país que é imenso e é também o campeão mundial de terras degradadas e sub-utilizadas. Degradadas muitas vezes pelos próprios proprietários em benefício próprio. As tentativas de reforma agrária que já foram feitas até o momento, para mim, soam muito mais como uma brincadeira perversa do que a afirmação de uma vontade política. E no campo, a ausência de oportunidades, obriga as pessoas a migrarem para as grandes cidades.
E, é aí, nas maiores cidades, que a gente vê que este abismo social torna-se cada dia mais intransponível. E eu fico muito irritado e indignado quando alguém vem me dizer: “Ah! Mas nas favelas a galera toda tem televisão, tem geladeira, tem forno micro-ondas. Eles até vivem bem na favela”. Mas na minha opinião isto não diminui essa situação inadmissível sempre presente na própria configuração das nossas cidades. Isto me entristece profundamente e me revolta, sobretudo quando se compara a nossa realidade com a de alguns países desenvolvidos, onde a dignidade do ser humano é respeitada.
AAMB: Fale um pouco a respeito do seu projeto para a Cidade da Música na Barra da Tijuca em parceria com o arquiteto francês Christian de Portzamparc. Como é a relação entre um paisagista carioca e um arquiteto estrangeiro que projeta na cidade? Existe algo, neste projeto especificamente, que fez o senhor relembrar a sua juventude quando ambicionava ser músico, conforme nos contou anteriormente?
FC: Vou começar pelo final da sua pergunta. Não acredito que o projeto da Cidade da Música me remeta aos meus sonhos ambiciosos e um tanto frustrados de ser músico. Pode ser quando muito uma coincidência. Nesse sentido, vou relatar uma particularidade do Portzamparc que soube por acaso ao ler uma de suas entrevistas e que eu acho que ele não sabe que eu sei. Ele também na sua juventude queria ser músico, mais especificamente pianista, e acho que também andou tocando pelas noites.
Essa talvez seja a coincidência: os quase futuros pianista e acordeonista se encontram no campo específico de suas atividades profissionais: a arquitetura e a arquitetura da paisagem para trabalharem juntos no projeto da Cidade da Música, que certamente trará mais música para a nossa cidade.
Quanto ao projeto paisagístico da Cidade da Música, está sendo uma grande experiência de criar nos seus espaços exteriores um projeto temático que tem por mote o próprio ecossistema da Barra da Tijuca.
As soluções paisagísticas relativas a componente vegetal do projeto estão baseados em processos ecogenéticos e em seus aspectos de fitosociologia e sucessão ecológica. O mosaico florístico final restaura e reproduz restingas abertas e fechadas, pequenos fragmentos de bosques de baixada, manguezais e áreas de transição.
Portzamparc é um arquiteto mais jovem que eu e temos tido uma relação muito boa, muito amistosa desde o momento que nos conhecemos. Ele me deu liberdade para projetar em todos os espaços ao nível do chão, inclusive nos espaços internos dos pilotis que integram o seu projeto arquitetônico. Acho que ele tem gostado de tudo que já fizemos até o momento. Fui escolhido por ele quando, após uma longa conversa, ele percebeu que eu talvez fosse o profissional daqui da cidade que estivesse mais familiarizado com as questões ambientais da Barra da Tijuca, onde tenho trabalhado por quase três décadas.