Christiane Crasemann Collins e trajetórias transatlânticas
Adalberto da Silva Retto Júnior
Christiane Crasemann Collins desembarca pela primeira vez no Brasil para participar do I Congresso Internacional de História Urbana “Camillo Sitte e a circulação das idéias em estética urbana: Europa e América Latina, 1880-1930”, apresentando "Notable highlights in the transfer of Camillo Sitte's ideas to Latin America". Sua curiosidade, acompanhada de seu entusiasmo e generosidade durante a realização do Symposium Camillo Sitte, em Viena (nov. 2003), fundamentaram a empreitada que acabamos de realizar: um verdadeiro debate de história comparada entre especialistas sobre estética urbana discutindo algumas “trajetórias transatlânticas”, circulação de idéias, modelos e suas declinações.
Collins é uma referência importante para historiadores da cidade e para urbanistas, arquitetos e paisagistas. Os primeiros a conhecem pela tradução fiel e integral para a língua inglesa, e sofisticada crítica filológica, da obra do austríaco Camillo Sitte (Der Städtebau nach seinen Künslerische Grundsätzen, 1965), elaborada juntamente com seu marido George Collins. Para os segundos, a tradução do Der Städtebau na década de 1960 se transformou no símbolo de “retorno à cidade” e, ao mesmo tempo, a sustentação de uma nova corrente da arquitetura e do urbanismo contemporâneos.
A perspectiva aberta a partir destes dois eixos pode ser guiada e sustentada, ao mesmo tempo, com aportes iluminadores se confrontarmos com publicações da época: Town design, 1953, de Frederick Gibberd; L’urbanistica e l’avvenire delle città, 1959, de Giuseppe Samonà; The image of the city, 1960, de Kevin Lynch (1), Studi per uma operante storia di Venezia, 1960, de Saverio Muratori, The death and life of great american cities, 1961, de Jane Jacobs (2); Towscape, 1961, de Gordon Cullen (3); The city in history, 1961, de Lewis Munford (4); Le origini dell’urbanistica moderna, 1963, de Leonardo Benevolo (5); Notes on the synthesis of form, 1964, de Christopher Alexander; Questioni di architettura e urbanística, 1964, de Giancarlo De Carlo; Origini e sviluppo della città moderna, 1965, de Carlo Aymonino; Urbanistica, 1966, de Giovanni Astengo; L' architettura della città, 1966, de Aldo Rossi (6); Il território dell’architettura, 1966, de Vittorio Gregotti (7); Immagine di Roma, 1969, de Ludovico Quaroni, La città di Padova: saggio di analisi urbana, 1969, de Carlo Aymonino et all; Design with nature, 1969, de Ian McHarg.
Esta visão amplificada nos faz pensar na formação de dois processos, com matizes, que se afirmaram no curso desses últimos anos: a afirmação do âmbito disciplinar do town design, em resposta à crise de identidade da cidade ocidental, e a valorização do fragmento, que em muitos casos reflete-se no culto do Patrimônio Histórico.
No campo dos estudos urbanísticos, a tradução deDer Städtebau pelos Collins participa de um momento de reavaliação do movimento moderno dos CIAM, que desmontaria, inclusive, afirmações de Le Corbusier e de Gideon sobre o texto de Sitte, visto como símbolo de um convencionalismo retrógrado e de passadismo, e que exprimia a nostalgia de um homem incapaz de compreender o próprio tempo e de reconhecer a revolução técnica e social que se colocava diante dos seus olhos.
Do ponto de vista projetual coloca-se em crise o ideal de totalidade e universalidade do Plano que, em certa medida, alimentaria o debate da consolidação de um “salto de escala” na resolução da cidade.
Neste cenário, e com algumas décadas de distância, re-emerge outro personagem também estudado por Collins: Werner Hegemann (1881-1936), através da re-edição (1988) do texto com Albert Peets, The american Vitruvius: an archietect’s handbook of civic art (1ª ed., 1922) e, mais recentemente, através do seu livro intitulado “Werner Hegemann and the search for universal urbanism” (2005).
Assim como os manuais de Stübben e Unwin, o texto de Hegemann e Peets definido pelos autores como um thesaurus, tem como principal referência Camilo Sitte. O próprio Hegemann distinguira, os adeptos de Sitte em dois grupos: a maioria que assimilou somente o lado pitoresco de suas obras e os, como Unwin, Abercrombie, Brinkmann e Gurlitt, que assimilaram os aspectos mais importantes.
Em tempos recentes, a interpretação medievalista de Sitte obteve um certo crédito como, por exemplo, no livro Storia dell’urbanistica, il novecento (1985) de Paolo de Sica, que estabelece associação entre informal-natural-democrático-medieval, ou ainda, no debate sobre o denominado “New Urbanism”, como acena o estudo de Andrés Duany e Elizabeth Plater-Zyberk’s, “The new civic art: elements of town planning” (8).
É justamente aqui que a tradução do Der Städtebau e a re-edição do The american Vitruvius assumem uma trajetória comum demonstrando um elo de interação, de reflexão e objetivos com os manuais de perspectiva elementarista, especialmente aqueles redigidos no clima positivista da segunda metade até o final do século XIX, quando a relação entre o todo e as partes da cidade era vista em termos menos problemáticos. Mais do que enfatizar o clima positivista, estes manuais assumem um papel chave na construção do imaginário científico e social.
Neste ponto, a explicação de André Chastel sobre tratados e manuais adquire certa importância, pois os manuais operam uma espécie de total contradição da experiência para a sincronia e a identidade pressupondo uma ordem estável das coisas e extrapolam “os materiais sob a forma de exemplos” e descontextualizam no tempo e no espaço seus objetos, criando “um repertório sistemático de ilustrações sobre a arte de construir por elementos e por tipos” (9)
Por um lado, a aproximação pode ser notada na idéia de instituir uma série de relações entre os elementos dentro de esquemas funcionais relativamente autônomos e um conjunto dos mesmos, a fim de garantir o funcionamento do organismo urbano e de uma composição urbana unitária. A pesquisa de elementos unitários e também a metáfora orgânica estabelecem uma continuidade, um percurso sem fraturas, que une os manuais dos últimos anos do século XIX aos do pós Segunda Guerra. Os elementos de ruptura com a tradição arquitetônica urbana introduzida pelo Movimento Moderno não chegam a colocar em discussão, de modo radical, os princípios compositivos do town design.
Por outro, na presença constante de alguns temas: no final do séc. XIX, o centro temático da Civic art era o projeto das novas expansões, em especial, de estabelecimentos com densidades diferentes daquelas da cidade compactada. Os exemplos contidos nos manuais de Stübben, antes, de Unwin, Hegemann, e depois, de Gibberd e Lynch, mostram quanto foi refletido sobre a possibilidade de inovação da forma da cidade a partir dos seus elementos.
Seguindo um movimento contrário, o debate arquitetônico no seio do CIAM, com a formação, sobretudo do Team X e de seus desdobramentos, não se remeterá fundamentalmente em causa desta “deslocação”: as estruturas dos vários tecidos propostos manterão os seus valores universais, mas também vêm à tona adaptabilidades aos terrenos concretos garantindo a riqueza potencial dos dispositivos combinados exibidos na materialidade das paisagens.
O que é colocado em evidência, quando remontamos ao elenco de publicações lançadas na época, não é o objeto singular para ser assumido como modelo, ao contrário, cada imagem singular reporta a um elenco de requisitos do espaço urbano que não nascem autonomamente de uma bagagem técnica ideal organizada pelo projetista e contido, por exemplo, na Carta de Atenas, mas das observações empíricas, da colheita de dados mesmo mínimos sobre a experiência do visível.
Será no livro de Gordon Cullen que emergirá a centralidade do conceito de townscape, que além de individualizar o léxico e a sintaxe para a descrição e valorização do contexto, enuncia claramente critérios para a ação projetual. Logo, o townscape se baseia nos princípios relacionais das diferenças significativas, um contextualismo urbano que pesquisa o caráter, a identidade do sítio e, no limite, os lugares heterogêneos.
Isso pode ajudar a compreender a atenção que na Itália, entre a metade e fim dos de 1950, o desenvolvimento de um momento peculiar do debate disciplinar voltado para categorias de interpretação do townscape, dando lugar a interpretações particulares. De um lado o universo italiano e francês, de outro, o universo norte-americano que encontra na figura de Janes Jacobs um personagem chave. Mas, será o aporte inglês aquele em que a nova disciplina encontraria sua plenitude. Foi das páginas da Architectural Review que Gordon Cullen, De Wolfe, Nairn, Richard, Browne, Crowe, De Maré e outros, exprimem os desejos de urbanidade, de complexidade urbana, em contraposição à expansão da cidade sem qualidade e contra a baixa densidade das New Towns, realizadas com uma linguagem urbana pobre.
O manual de Frederick Gibberd, dentro deste contexto, ganha significação particular por duas razões. Em primeiro lugar, porque se trata de um manual de town design que, em tempos modernos, se insere com clareza nas tradições dos manuais de Sitte, Unwin, Hegemann e que, com esses, estabelece um posicionamento não banal de continuidade, propondo a conciliação da tradição do civic design com as posições do Movimento Moderno. Em segundo lugar, por que Gibberd definirá de modo amplo os princípios do town design, evitando parar, como muitos textos de civic design, diante dos problemas contemporâneos. Os elementos urbanos são materiais para organizar dentro de uma idéia geral de cidade e “O town design compreende arquitetura, landscape e desenho das estradas, que perdem a sua individualidade para transformar-se em uma coisa nova: a cena urbana”.
É evidente a semelhança das posições de Gibberd e Gordon Cullen. Na introdução de Townscape, Cullen estende à cidade inteira e aos seus habitantes, a faculdade que Gibberd atribui a um conjunto de edifícios e de elementos urbanos, ratificando a afirmação de que “a representação do plano da cidade é o primeiro degrau do town design, mas é freqüentemente o último desenho do town planning”.
Entender o conceito de townscape como uma arte implica em uma leitura do ambiente urbano evidenciando suas conotações estéticas. Definição que caracterizaria o modelo chamado por Françoise Choay de “culturalista” (10) e que permeia os escritos de Camillo Sitte.
Apesar do termo townscape remontar quase uma década antes da publicação do livro homônimo, encontra suas origens culturais no fim do segundo conflito mundial e tem como principal porta voz a revista inglesa “Architectural Review”, que não só chamava atenção para necessidade de retorno aos valores perceptivos da forma urbana, mas também, se torna o berço e canal de divulgação das temáticas que embasariam a formação do corpus disciplinar daquilo que hoje definimos como urban design.
Cada um dos manuais citados teve sucesso alternado. Entretanto, a arte de que todos eles enunciam, é uma arte que constrói o problema, não diretamente as soluções. As pesquisas e estudos progridem e desvelam novos conceitos relativos à “arquitetura urbana”, à “composição urbana” e ao “projeto urbano”. A palavra “urbano”, que adjetiva estes substantivos, exprime nada mais que a tensão dos pesquisadores e urbanistas em indicar novos âmbitos que põem em crise àquela que parece ser a não-cidade nascida depois dos modernos.
notas
1
LYNCH, Kevin. Imagem da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1980.
1
JACOBS, Jane. Morte e vida de grande cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
3
CULLEN, Gordon. Paisagem urbana. São Paulo, Martins Fontes, 1983.
4
MUNFORD, Lewis. A cidade na história. São Paulo, Martins Fontes, 1991.
5
BENEVOLO, Leonardo. Origens da urbanistica moderna. Lisboa, Presença, 1981.
6
ROSSI, Aldo. Arquitectura da cidade. Lisboa, Cosmos, 1977. São Paulo, Martins Fontes, 1995.
7
GREGOTTI, Vittorio. Território da arquitetura. São Paulo, Perspectiva, 1975.
8
DUANY, Andes; PLATER-ZYBERK, Elizabeth; ALMINANA, Robert. The new civic art - elements of town planning. Nova York, Rizzoli, 2003.
9
CHASTEL, André. Architettura e cultura nella Francia del cinquecento. Torino, Einaudi, 1991.
10
CHOAY, Françoise. Urbanismo: utopias e realidades. São Paulo, Perspectiva, 1979.