Fábio Duarte: Mesmo antes do início de sua formação como arquiteto, você sempre esteve ligado a outras formas de arte, especialmente fotografia e música, tendo sido aluno e parceiro de grandes referências do século 20, como Hans Joachim Koellreutter e John Cage. Para você, quais as relações entre essas diferentes linguagens e como elas se manifestam em suas composições – especialmente de arquitetura?
Emanuel Dimas de Melo Pimenta: O que e faço não é música, nem arquitetura ou fotografia – o que eu faço são armadilhas lógicas. Apenas isso. A relação entre diferentes linguagens está no pensamento, na lógica, na estrutura do pensar. Assim, na sua integridade, uma manifestação nunca é ilustração de outra
FD: Ok; mas então, trabalhando as armadilhas lógicas, quais as especificidades de uma linguagem que lhe fazem trabalhar tais armadilhas nela e não em outra linguagem?
EDMP: As armadilhas são a linguagem, na sua própria elaboração, expandindo-se para além da réplica, para além da entropia. Mas, de fato, as linguagens contaminam-se numa trama dinâmica. Aqui, evidencia-se o trans em lugar do inter. O fenômeno não está "entre" enquanto invólucros de linguagem, compartimentos, mas na transição de uma a outra linguagem, todas pertencendo a uma formidável teia sinérgica. Sempre que trabalhamos uma linguagem, especialmente em termos metalingüísticos, estamos operando todas as linguagens, como uma espécie de zeitgeist. Assim, toda a cultura não apenas é imensamente absorvente como também, e principalmente, entorpecente. Daí, a dificuldade em trabalhar armadilhas lógicas – pois significa, em primeiro lugar, elaborar armadilhas para nós mesmos. Mas, devo confessar – eu nunca decido trabalhar numa ou noutra linguagem. Eu apenas faço o que deve ser feito. Quando o caso é música, trabalho com os sons. Quando é espaço, trabalho com todos os sentidos. Quando se trata de algo escrito, lido com letras e sons e palavras. O recurso aos elementos que providenciam as armadilhas – tal como usar ondas sonoras vindas do Sol, ou trabalhar a tendência neuronal de sincronia – surge da observação livre, do livre pensar, do tempo livre – que é, muito seguramente, o nosso bem mais precioso. Assim, eu não expresso as armadilhas lógicas em palavras, sons, formas ou luz. Elas são palavras, sons, formas e luz. Não é algo anterior que é levado como conteúdo para um outro meio, mas é o próprio meio enquanto processo. Esse é o sentido primeiro das armadilhas lógicas. Não trabalhamos representações, mas o processo em si.
FD: Em uma entrevista em 1995, você dizia que havia pouco conhecera a Internet com René Berger, um importante pensador das mídias. Hoje, um de seus atuais projetos é ex post factum, com participação de diversos profissionais e trabalho em rede. Você poderia nos contar um pouco a experiência de trabalhar em rede?
EDMP: De fato, conheci René Berger em 1987 e rapidamente nos tornamos grandes amigos. Virtualmente inseparáveis. Estamos sempre em contato. René colocou-me em contato com a Internet creio que em 1988 ou 1989, mas eu levei algum tempo para lançar-me definitivamente a ela. Eu já estava em contato com a Internet – mas não elaborava sites, não tratava de projetos implicando o seu uso direto. Eu estava demasiado concentrado na elaboração de projetos envolvendo Realidade Virtual Sintética na modelação de sistemas plásticos. Ex post factum é um projeto envolvendo dinamicamente pessoas de diversos países. Eu comecei este projeto em Nova York, no ano 2000. Rapidamente formávamos um grupo muito especial: Fast Forward, Bruce Gremo, Tom Hamilton, Peter Zummo e eu em Nova York; Maria Bonomi no Brasil; Joe Brenner na Suíça; Tamara Lai na Bélgica; Loiez Deniel na França; Dan Shechtman em Israel; Roman Verostko também nos Estados Unidos e assim por diante. Música, arte digital, poesia, filosofia, ciência – tudo junto. Mas, o objetivo desse projeto é ser aberto, sem início ou fim, sem criador ou criatura. Uma espécie de trabalho permanentemente in progress, contando com a contribuição de pessoas de todo o mundo. Mas, quem se dedica realmente a projetos em rede é a Tamara Lai. Eu trabalho muito em rede, aliás, faço-o todo o tempo. Há muitas pessoas que nem conheço pessoalmente e que são grandes amigos.
FD: Ainda pensando na rede e seu sentido de equilíbrio dinâmico pela inexistência de um único centro gerador de energia ou controlador de fluxos e a imagem tradicional do arquiteto como "o" autor, até que ponto de fato a idéia de rede afeta o trabalho/pensamento do arquiteto?
EDMP: Talvez o melhor exemplo para essa questão é o projeto Amores, a ilha artificial para Lisboa, megaestrutura para estar integrada aos projetos destinados à candidatura de Portugal aos Jogos Olímpicos de 2020. Trata-se de um projeto gigantesco, mas que pode ser pequeno. Desprogramável. Feito em partes articuláveis. Podendo expandir-se ou diminuir, “explodir” em fragmentos espalhados pelo magnífico estuário do rio Tejo e depois juntar-se novamente. Um projeto que contará com equipes de jovens arquitetos, urbanistas, engenheiros, biólogos, sociólogos, artistas, ecologistas e outros, que tratarão de repensar continuamente tanto o programa como a própria forma e localização do edifício. Mesmo sendo o “autor”, na verdade o meu trabalho foi elaborar um formidável jogo aberto de soma não-zero, não um monumento. Nada estático. Aquilo a que chamamos “inteligência” não está “dentro” de nós – mas “entre” nós. Somos constituídos por tudo o que é linguagem – verbal ou não verbal. Nunca ensinamos, apenas aprendemos.
FD: Você poderia desenvolver a idéia de arquitetura desprogramável, já presente em seus projetos do início dos anos 1990?
EDMP: A idéia de uma arquitetura desprogramável, utilizando explicitamente a palavra, não é um conceito que eu tenha elaborado – embora estivesse presente no meu trabalho desde os anos 1980. Ela surgiu quando estudei o processo de elaboração espacial em algumas tribos indígenas Brasileiras – especialmente os Bororo, do Brasil Central. Para eles, uma aldeia é dividida em núcleos que devem ser destruídos a cada período de sete a dez anos. Uma vez destruído, o núcleo é reconstruído em outro lugar, obrigando a um repensar de toda a microestrutura de poder, para resgatar uma imagem cada a Foucault. Em 1979 passei uns tempos em viagem, com um maravilhoso grupo de geógrafos, sociólogos e geógrafos, por algumas aldeias indígenas no sul da Floresta Amazônica. Fui como fotógrafo e dediquei-me a refletir sobre os princípios de elaboração do tempo e do espaço entre aqueles povos – música e arquitetura. Observei que em praticamente todas as habitações indígenas que visitei a estrutura física de suporte de objetos era aérea. As pessoas literalmente penduravam coisas em suportes. Isso tinha uma finalidade específica – evitar que os insetos rasteiros pudessem alcançá-las. Mas, por outro lado, essa estratégia fazia com que tudo pudesse ser “pendurado” em qualquer lugar – podendo mudar a qualquer instante. Essa mobilidade tornava aquelas habitações extremamente dinâmicas e flexíveis. Aquela viagem – eu tinha vinte e um anos de idade – fez-me perceber como nós vivemos aprisionados em espaços imóveis, verdadeiras prisões ao nível lógico. Mas, somos mudança, todo o tempo! Depois, já no início dos anos 1980, eu conheci e fiz um workshop com o Yona Friedman – que era uma pessoa maravilhosa. Mas, não se tratava de arquitetura móvel e sim de algo que pudesse ser completamente transformável, que pudesse ser uma verdadeira metamorfose espacial, como somos. Creio que foi em 1988, participei de uma exposição na Holanda que tratava exatamente disso – desprogramabilidade. Aí surgiu a palavra – é isso!