A cidade inacabada: as fotografias de longa-exposição de Michael Wesely
Paulo Tavares
Assim como grande parte do público brasileiro, conheci o trabalho do fotógrafo alemão Michael Wesely na 25a Bienal de Arte de São Paulo, realizada em 2002, quando, sob o tema Iconografias Metropolitanas, apresentou as imagens que fizera entre 1997 e 1999 da reconstrução urbana da famosa praça de Berlim, Potsdamer Platz, ao lado do trabalho New York Verticals. Dois anos depois, talvez fruto do acaso, talvez fruto do impacto do trabalho de Wesely no meu imaginário urbano, realizei uma pesquisa sobre o processo de reconstrução da praça alemã. A questão imagem-cidade estava tão presente na transformação da Potsdamer Platz que, inevitavelmente, eu re-encontraria Wesely em algum ponto de minha pesquisa: porque se tratamos de refletir sobre imagens, e principalmente imagens da cidade, iconografias da metrópole, as imagens de Wesely são, como o próprio fotógrafo define, aberturas por onde partimos. Esta entrevista está inserida neste contexto, um tanto específico, antecipo ao leitor. As questões dirigem-se mais ao trabalho do fotógrafo sobre a praça alemã, deixando de lado, infelizmente, outras interessantes faces de sua obra, como a série American Landscape, as fotografias de Brasília, o projeto Open Shutter (que documenta ampliação do MoMA), ou mesmo os trabalhos sobre São Paulo e Los Angeles. Mas nem por isso deixam escapar uma reflexão menos circunscrita de grande interesse para todos aqueles que pensam as cidades contemporâneas, pois o que está em foco é a relação entre imagem e cidade, objeto privilegiado no trabalho de Wesely (1).
Desnecessário dizer o que significava reconstruir Potsdamer Platz após a unificação alemã e a confirmação de Berlim como capital do Estado. Motivo pictórico das vanguardas modernas, destruída pelas bombas e dividida pelo muro, reconstruir um lugar tão representativo da cidade, era, no fundo, re-conceber a imagem do que seria a Alemanha unificada, e, para tanto, equacionar demandas políticas, sociais e econômicas de diferentes segmentos da sociedade. No plano da arquitetura e do urbano, a diversidade de propostas para a área e a fortuna crítica que desencadeara revelam a importância do projeto para o discurso urbano contemporâneo, pois poderíamos mesmo dizer, o furor das teorias pós-modernas já dava sinais de esgotamento, e assim, ao vazio da praça pronto a ser preenchido somava-se um outro vazio, este conceitual, que dizia respeito às transformações da própria disciplina urbana e suas relações com as mudanças na política, na economia e nas novas formas de arranjo das cidades face à intensificação da globalização (2). Evidentemente, fotografar Potsdamer Platz já era, pelo próprio motivo fotográfico, algo de grande vulto no final da década de 90. Contudo, as fotos feitas por Wesely destacaram-se na Bienal de 2002 não somente porque, tratando-se de ícones das metrópoles, ali estava retratado um dos mais significativos processos de reestruturação urbana do final do século XX, nem mesmo porque as dimensões das fotos eram extraordinárias, mas principalmente por se tratarem da construção de um tipo muito peculiar de imagem da cidade. Se o motivo do fotógrafo é óbvio e já vem carregado de diversos significados, a imagem que ele constrói não é limitada por eles e não poderia estar mais distante do lugar comum quando o que está em pauta são representações da metrópole. Por isso, o trabalho de Wesely merece significativo destaque e nos exige uma atenção reflexiva quando observado.
Seu processo consiste numa investigação, como o próprio fotógrafo nos explica na entrevista, sobre o momento fotográfico. Tempo geralmente determinado pela abertura do diafragma segundo as condições de luminosidade do ambiente, o momento para Wesely desprende-se de suas determinações rigorosamente técnicas e passa a ser o próprio “objeto fotográfico”. O fotógrafo desenvolveu uma técnica peculiar em seus trabalhos: dilatando o tempo de exposição em até dois ou três anos, a câmera de Wesely registra tudo o que se passa na frente dela, como se assistíssemos a um longo filme condensado em apenas um frame; uma sucessão de eventos amalgamados em simultaneidade. A primeira impressão é o estranhamento, pois são imagens imprecisas da cidade que ao mesmo tempo vem carregadas de uma riqueza de detalhes infinitos. Não conseguimos formar a imagem de um edifício, ou ter a certeza precisa dos contornos que o conformam; é como se a arquitetura perdesse sua realidade material. O que vemos são construções inacabadas justapostas ao vazio inaugural, como se diferentes “tempos” fossem reunidos para compor o mesmo espaço; ou diferentes paisagens condensadas no mesmo momento. Numa mesma imagem está presente aquilo que foi e aquilo que possivelmente será.
A propósito do trabalho de Wesely, e principalmente, se nosso horizonte último é a arquitetura, a propósito de suas fotos de longa exposição de paisagens urbanas, talvez fosse o caso de citar Bergson: “O que é real é a mudança contínua da forma: a forma é apenas a visão instantânea da transição” (3). Se a fotografia ordinariamente dirigi-se a visão instantânea que a máquina nos permite retirar do constante fluxo da mudança, as fotos de Wesely “invertem o sistema”, e parecem dizer mais respeito ao tomar-forma, à mudança, do que ao instante. Suas fotos inserem-se no meio, trabalham a transição, ficam numa zona incerta entre o antes e o depois, o passado e o futuro. Talvez, observada num primeiro momento, a iconografia da metrópole forjada pelo fotógrafo possa parecer insuficiente, pois o que se apresenta diante de nossos olhos é uma cidade inacabada. De fato, Wesely não constrói nenhum ícone da Berlim contemporânea nem nos fornece imediatas identificações. Mas talvez por isso mesmo, refletindo um pouco mais cuidadosamente então, as fotos de Wesely convertam-se na iconografia da metrópole contemporânea mais relevante, porque dizem respeito ao movimento, à mudança, ao fluxo da temporalidade sócio-urbana que é a própria essência das cidades. Seu trabalho abre-nos a possibilidade de captar a arquitetura através de um olhar distinto: aquele que enxerga a cidade como algo que está sempre por se fazer, nunca conclusa.
Falando diretamente para o público brasileiro, a perspectiva que se apresenta poderia ser sumarizada nas últimas palavras de Wesely na entrevista, quando a respeito de seu trabalho sobre Brasília, diz o fotógrafo: “Isso tudo parece tão puro, mas vem a realidade e tudo fica diferente”.
notas
1
Para mais informações sobre o trabalho de Michael Wesely, visite www.wesely.org.
2
Para uma boa amostra das discussões geradas com os projetos para Potsdamer Platz ver a revista Lotus, p. 80, ed. Electa.
3
Henri Bergson, apudKWINTER, Sanford. Architectures of time. Massachusetts, The MIT Press, 2002.