NU: Na preparação para esta entrevista devemos reconhecer que tivémos alguma dificuldade em nos enquadrarmos com o ambiente complexo em que se insere grande parte da sua actividade profissional: a ditadura e a luta pela mudança pré 25 de Abril. Como se refletia na prática arquitectónica do seu atelier esta necessidade de mudança e a premência de reestruturar sócio/culturalmente e politicamente a sociedade?
Nuno Teotónio Pereira: Bom, vamos então viajar 50/60 anos atrás… Eu tive muita sorte nos primeiros anos de actividade profissional. Havia poucos arquitectos, era vulgar termos encomendas de projectos ainda antes de acabarmos o curso, pelo menos nos últimos anos. E eu tinha dois aspectos que, de alguma forma, facilitaram essas primeiras encomendas. Por um lado, a minha família estava muito ligada política e economicamente ao regime salazarista – o meu pai era director da companhia de seguros na altura. Por outro lado, estava muito ligado à igreja católica, o que me possibilitou ter várias encomendas para projectos de igrejas – algumas delas marcantes. Tive também a possibilidade de ainda muito novo fazer um edifício de habitação que também me marcou muito: o Bloco das Águas Livres (3).
Eu estava muito influenciado pelas ideias arquitectónicas do Le Corbusier e de uma maneira geral às ideias do movimento moderno europeu. O Frank Lloyd Wright e os americanos estavam, para mim, um bocado afastados. E estávamos em plena 2ª Guerra Mundial. Aliás, o meu curso coincidiu exactamente com a 2ª grande Guerra: entrei para a Escola de Belas Artes – que ainda não era Superior – no dia 1 de Setembro de 1939 e quando a Guerra acabou em 1945, eu já estava na fase final do curso.
Nesse período consegui obter referências de obras do movimento modernista europeu, sobretudo da Suiça, que se “absteve” da guerra e continuou a produzir, ao contrário dos países envolvidos na guerra. E também da Suécia, onde o movimento moderno continuou a impor-se. Os países com governos fascistas no poder (Portugal incluído) sufocavam as obras do movimento moderno, tentando-nos impor a dita arquitectura nacional. Facto que, nós estudantes, contestávamos.
Havia um espírito de luta, de resistência. O nosso ideal era o modernismo e os nossos inimigos ou adversários era o poder português, onde se incluía o próprio director da Escola, o professor Agostinho da Silva – que fez o projecto da praça do Areeiro, entre outros. Isto fez-nos aprender a lutar, a resistir, a contrapor.
Depois, o congresso de 1948 (4), depois da guerra, foi importante para que estas posições se começassem a esbater. E daí que a maioria das minhas obras correspondam a um período em que já não havia tanta imposição em termos estilísticos da parte do Estado. De certa forma, tentei aproveitar este relativo período de abertura e através de debates, reuniões, sessões de esclarecimento, publicações de artigos em jornais, tentávamos levar a nossa opinião e influência até à praça pública.
NU: Por exemplo, no projecto para a igreja do Sagrado Coração de Jesus aqui em Lisboa, parece ter havido uma real reinterpretação do que é a religião, a Igreja, e do que ela poderá, ou poderia, ser. Ao furar o quarteirão com a igreja, diluindo-a na urbe em vez de a destacar como era habitual, e ao adicionar vários elementos programáticos que extravasavam a realidade e o meio algo fechado da igreja em si, parece querer introduzir um gesto algo crítico e prepositivo.
NTP: Bem. Devo, primeiro que tudo, salientar que o poder católico estava também muito empenhado, durante esses anos, num processo de renovação e abertura da própria Igreja Católica. Porém, passados uns anos, esse processo parou, estagnou, tal como está hoje… Daí que hoje não me identifique com ela.
Por oposição, fizeram-se algumas grandes igrejas nessa época aqui em Lisboa. A Igreja de D. João de Deus, na Praça de Londres, S. João de Brito, em Alvalade, a Igreja de Campo de Ourique, que se destacavam do seu contexto, afirmando-se pela imponência e pelo seu relativo isolamento, muito ao estilo do Estado Novo. Nós criticávamos muito essas igrejas, fazíamos abaixo-assinados de protesto, etc.
Daí que a Igreja do Sagrado Coração de Jesus não seja um objecto isolado e afirmativo, mas esteja inserido na malha urbana. Aliás, como também já tinha acontecido e que nos servia de exemplo, na reconstrução pombalina, onde as igrejas estavam inseridas nos quarteirões.
Outro aspecto onde eu tive muita sorte foi na qualidade dos colaboradores que iam chegando ao meu atelier. Primeiro foi o Costa Cabral, que era muito jovem (tinha acabado o curso) e que teve um papel importante no tal projecto do bloco das Águas Livres. E, mais tarde, o Nuno Portas, que quase poderemos dizer que foi o autor principal da Igreja do Sagrado Coração de Jesus.
Fato curioso é que, na altura, alguns artistas e arquitectos (onde eu me incluía) fundaram um movimento denominado Movimento de Renovação da Arte Religiosa. Uns dos primeiros êxitos desse movimento esteve relacionado com o facto de ter conseguido que esse projecto não tenha sido atribuído ou encomendado a nenhum projectista específico, mas que se tivesse realizado um concurso público, o qual nós acabamos por ganhar.
NU: Uma máxima do seu atelier é falar da arquitectura como um serviço. Em que sentido poderemos falar, hoje, da arquitectura como um serviço? O sentido da frase mudou ao longo dos tempos?
NTP: Falta-me dizer uma coisa muito importante relativamente ao meu passado e que tem a ver com isso. Desde o princípio da minha actividade que estive muito preocupado e atento à habitação social. O primeiro trabalho que entreguei na Câmara, ainda como assessor de um arquitecto principal, foi a reconstrução do bairro de Alvalade, habitações de rendas limitadas, com características sociais. Posteriormente passei para outro organismo, que na altura se chamava Caixa de Providência, onde trabalhei durante 22 anos, sempre fazendo habitação social. De certa forma, especializei-me neste tipo de trabalho e graças a esta preocupação social fui convidado para vários congressos internacionais, em Cuba, na Finlândia…
Este organismo também tinha, ao mesmo tempo, uma preocupação de encomendar muitos projectos a arquitectos do norte, de modo a diversificar as propostas e não centralizar as coisas aqui em Lisboa.
Eu acho que estes trabalhos mais burocráticos também são importantes, e estes da habitação social permitiram-me tomar contacto com essa realidade.
NU: Outra coisa que tem sido muito vincada por quem passa pelo atelier é a noção de que a arquitectura não é a duas dimensões, não é a preto e branco. Para perceber um objecto arquitectónico é preciso fazer uso da luz, da cor, da textura. No limite o cheiro. Gostávamos de perguntar se é isso que serve de pretexto para a determinada altura o atelier chamar artistas de outros campos – para tornar o projecto numa experiência sensorial mais completa.
NTP: Sim, isso tem em parte a ver com o facto termos estudado numa escola de belas artes onde havia também o curso de pintura e escultura, de termos tido vários colegas dessas áreas e que naturalmente chamávamos a colaborar. Por outro lado, houve uma época em que a câmara de Lisboa tornou obrigatório que cada prédio tivesse uma obra de arte. E isso pode-se ver muito aqui em Alvalade, na avenida de Roma. E como isso era obrigatório, até na habitação social se aplicava essa regra. A habitação social tem custos reduzidos mas a obra de arte tinha também de lá estar. E nós aproveitámos isso. Nuns edifícios ali nos Olivais, por exemplo, a obra de arte não está só na fachada mas há uma escultura, uma pintura ou um mural em cada andar para enriquecer os espaços, para lhe dar mais interesse.
notas
3
Bloco das Águas Livres, em co-autoria com Bartolomeu Costa Cabral (Lisboa, 1953-1955).
4
1º Congresso Nacional de Arquitectura (1948).