NU: Comente o SAAL (6).
Nuno Teotónio Pereira: Nós nunca tivemos oportunidade de discutir muito os projetos com os clientes. Mas no projecto SAAL tivemos essa experiência. Num projecto que não se chegou a concretizar, que era ali para Almada e também outro para o Alentejo, nós levávamos os nossos esquissos e os desenhos para as reuniões com os moradores e então aí era tudo discutido. E a certa altura nós tínhamos projectado uns tectos inclinados dentro de casa que advinha do telhado de duas águas desfasadas e as pessoas começaram a contestar aquilo. Nós explicámos que aquilo dava uma certa riqueza ao espaço e um certo movimento, mas diziam “nós gostamos mais do tecto direito, porque é que não fazem o tecto direito?”. Até que uma senhora perguntou “então os senhores nas casas onde moram lá em Lisboa não têm os tectos direitos?”. Ficamos embatucados…
NU: Faz lembrar o que aconteceu com o Siza em cabo Verde no projeto para a Cidade Velha… Como é que se projeta para uma habitação social? Não será que os arquitectos não estarão dessa forma a condicionar demasiado o modo de vida das pessoas que lá vão habitar por preconceitos ou estereótipos que têm acerca do seu modo de vida?
NTP: Eu fiz muitos projectos de habitação social e havia esse problema – não saber quem é que ia morar nas casas… não há esse contacto e então cometemos talvez alguns erros. E a sociedade também evolui; eu escrevi há pouco tempo para um colóquio em que participei uma publicação sobre habitação social ao qual chamei «do esquerdo direito ao esquerdo direito» porque o primeiro trabalho de habitação social que eu fiz foi uns prédios em Braga; são uns prédios de quatro pisos com uma entrada a meio e depois esquerdo/direito. Depois começámos a ver que as pessoas vinham de bairros degradados, havia grandes relações de vizinhança, tinham amizades ali no próprio bairro e então nós começámos a desenhar espaços de convívio. Nos Olivais Norte fizemos patamares bastante grandes com bancos e espaços para porem umas cadeiras e os vizinhos poderem encontrar-se ali a conversar uns com os outros etc.… e galerias também. E depois víamos as pessoas de facto cá fora a conviver, os miúdos… Tenho uma fotografia de um senhora com um fogareiro a assar qualquer coisa cá fora na galeria. Nós demos-lhe uma largura generosa para isso, para as pessoas estarem ali sentadas a conversar, o que realmente acontecia. Mas a certa altura o Nuno Portas organizou um colóquio no sindicato dos arquitectos e convidou um sociólogo francês e uma das coisas que me impressionou e que eu nunca mais me esqueci foi que os pobres têm as suas relações de amizade no próprio bairro enquanto que os amigos das pessoas mais bem situadas na vida não são os do prédio – estão em vários pontos da cidade. E nós começámos a pensar nisso e a perguntar se essa coisa das galerias e espaços de convívio realmente tinham sentido ou não, e então deixámos de o fazer. A minha última obra de habitação social foi para Oeiras e aí voltei a fazer o que tinha feito em Braga há meio século antes – um prédio como este de esquerdo/direito. E fui há pouco tempo ver um desses bairros dos Olivais onde se construíram as tais galerias e estas estão completamente desertas, uma delas até tem uma porta, está fechada.
notas
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O Serviço de Ambulatório de Apoio Local (SAAL) foi um programa de promoção da habitação de interesse social lançado durante o I Governo provisório de Portugal, em 1974. O arquiteto Nuno Portas, secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, foi o gestor do processo.