Beatriz Carra Bertho: Um dos valores mais importantes ensinados por Lina é percebido na “ação arquitetônica” da obra de vocês, pois traz no seu centro o homem, sua vida e sua cultura, porque o maior interesse é a vida que acontece nos espaços projetados. Como essa herança da Lina ainda se renova no trabalho de vocês?
Marcelo Ferraz: Eu acho que essa chamada herança da Lina é na verdade uma leitura que se faz, ou um ponto de vista que se toma da obra da Lina. Porque no período em que trabalhamos com ela o que havia era muito trabalho e não sobrava muito tempo livre para parar e pensar no que fazíamos; estávamos dentro. Hoje, essa distancia no tempo nos dá mais condições de análise. Depois de fazer as exposições e o livro da Lina que giraram o mundo, vira e mexe, temos que pensar sobre isso, assim como pensamos a obra do Lucio Costa, do Oscar [Niemeyer], e então passamos a ter uma visão mais crítica, ver o que é que eles tinham de mais interessante. E, ao fazer essa leitura, identificamos e explicitamos coisas em suas obras que, talvez, sejam nossas. É difícil dizer que se tem uma herança, pois não se trata de uma apropriação direta. Nem direta e nem tão clara a ponto de uma afirmação contundente. Acho que você, ou os que olham de fora, podem até fazer isso, mas para nós é muito difícil. Trata-se do nosso modo de fazer arquitetura, como encaramos as questões, e isso é muito simples de ver: estamos, desde o princípio de nossas carreiras, envolvidos com as obras e com as pessoas, com a luta por realizar o projeto, isso desde o primeiro concurso que ganhamos. Está em nossa dinâmica de trabalho. Eu vejo assim, e é claro que a preocupação humanista, (aliás, eu acho que deveríamos retomar essa palavra e começar a usar mais, pois está tão em desuso, tão fora de moda, e é tão boa) é parte da nossa formação. Hoje não conseguimos mais, como nos tempos da universidade, dizer que somos comunistas ou mesmo socialistas. Tudo ficou muito misturado e confuso. Mas que temos uma preocupação humanística, temos, sem dúvida. Não é mesmo Chico?
Francisco Fanucci: É, e também com relação à “ação arquitetônica”, eu acho, na verdade, que cada projeto é uma renovação, cada projeto é um universo completamente novo, um universo de relações a ser desvendado, traduzido e apropriado, cada experiência é sempre diferente da anterior. Quer dizer, não nos sentimos presos a nenhuma herança no que diz respeito a formas, técnicas ou a materiais. Na dinâmica do trabalho lidamos principalmente com elementos relacionados ao próprio universo com o qual interagimos.
MF: E talvez o tempo que já temos de trabalho, pouco mais de 30 anos de escritório, desenvolvendo, praticando, fazendo de uma certa maneira, com um certo approach, que resultou num jeito de olhar para as coisas: como encarar cada projeto de maneira diferente; um jeito de olhar, de tentar relacionar, buscar ligações que muitas vezes não são tão óbvias, não são simplesmente formais. Apesar da arquitetura sempre resultar em forma, para nós, no nosso modo de projetar, ela não começa pela forma.
BCB: Além dos ensinamentos da Lina, é possível perceber outras influências, comuns aos arquitetos da mesma geração, a qual o Brasil Arquitetura pertence, como a de Villanova Artigas, Corbusier, Mies Van der Rohe, Alvar Aalto e Luis Barragán. E o Lelé (1) aponta também a presença dos ensinamentos de Lucio Costa na obra de vocês. O que ou quais características, em sua opinião, fazem deles referências frente à arquitetura?
FF: Acho que não há uma característica de cada um ou mais de uma: são nossos mestres, mestres a quem a gente sempre se reporta. É um conjunto de coisas, eu não saberia identificar o que é em cada um. Esses e outros mestres são o nosso norte, nossa base. É como se eles é que nos instrumentalizassem, vamos dizer assim, para encarar a realidade e o sonho. Às vezes é até possível dizer que algo vem deste ou daquele, especificamente.
MF: Em nossa formação, na FAU, basicamente estudamos os clássicos, Le Corbusier, [Alvar] Aalto, Mies [Van der Rohe], Frank Lloyd Wright. Acho que isso era assim a nossa “velha guarda”, situação diferente da de hoje, em que há uma enorme gama de arquitetos-estrela; nossas estrelas ainda eram aqueles, mesmo os que já tinham morrido, eram as nossas referências. Vilanova Artigas e seu jeito de projetar com grande rigor técnico veio também em nossa formação porque estudávamos na FAU, que era, por assim dizer, a sua casa. Lucio Costa para mim foi uma descoberta até um pouco posterior, pois na FAU não estudamos sua obra. Entendo que o Lucio Costa é justamente um humanista, muito ligado às questões brasileiras, que lutou por uma nação com uma cultura própria, original. E isso para nós é muito importante. Eu sei que é um risco, pode parecer “O Marcelo é muito nacionalista”, o nosso escritório tem nome “Brasil”, mas não é assim, não é uma coisa retrógada. Nós tivemos agora essa discussão lá na Itália (2), e foi muito interessante. Porque é muito perigoso isso de dizer: “nacionalismo é uma coisa retrógrada, coisa que puxa para trás”, ou, ao contrário, dizer “só o que é brasileiro é bom, nossas tradições, isso e aquilo”, mas ter uma idéia de nação, afirmativa, importante, é legal. Impor-se como nação, como uma cultura a mais e não ser subjugado ou submisso a outros povos é bom.
notas
1
LIMA, João da Gama Filgueiras Lima. Apresentação 1. In FANUCCI, Francisco; FERRAZ, Marcelo. Brasil Arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2005, p. 9.
2
Referência à exposição A tradução do novo – La traduzione del nuovo, realizada em Roma, Itália, no período de 26 de fevereiro a 2 de maio de 2010.