Beatriz Carra Bertho: O mundo atual é percebido por muitos como algo caótico, desordenado e mesmo hostil. Não menos importante é a desorientação causada por problemas urbanos (insuficiência de habitação, ausência de desenho, proliferação de espaços que negam a cidade) e que contribuem para cidades organizadas de maneira confusa, sem hierarquia clara, povoadas por uma esmagadora maioria de edifícios equivocados na sua concepção, cuja aspiração à monumentalidade e notoriedade só agrava a sensação de se estar em nenhum lugar. Como deve se posicionar o arquiteto diante do caos das cidades contemporâneas?
Francisco Fanucci: Eu acho que trabalhamos com uma consideração muito grande em relação ao lugar do projeto. E acreditamos muito – creio que o Marcelo também - em ações pontuais e na capacidade de contaminação que elas têm, talvez mais que em planos gerais para a cidade contemporânea, planos que pretendem abarcar toda sua complexidade e dinâmica. A gente vê a cidade mais como uma construção em permanente processo de desenvolvimento. E cada ação, cada ponto, cada coisa que a arquitetura tem capacidade de provocar num lugar pode contribuir para a mudança de conduta das pessoas, pode orientar para uma direção que se deseja. É lógico que esse “caos” demanda uma ordem, uma visão global deste processo, uma compreensão da cidade e seu território. Visão que se rebate, mas também se constrói no interior do tecido urbano, ali, em cada ação. A vida de muitas pessoas é alterada com a construção de um edifício em uma rua qualquer. Sua presença pode ser definidora, vamos dizer assim, de um processo de reurbanização. Acreditar nisso é acreditar na responsabilidade nossa em cada ação arquitetônica, que tem, necessariamente, essa dimensão urbana.
Marcelo Ferraz: Isso poderia ser até uma defesa da nossa ação, da nossa ação de projetar, de trabalhar e acreditar no que estamos fazendo, uma justificativa para podermos continuar trabalhando, mas não. Acho que podemos alterar coisas, melhorar a vida ou o conforto das pessoas em nossas cidades. Os grandes planos falharam. As cidades são feitas por muitas mãos e por muitas ações, não só de arquitetos. Então, acho bom pensar que o tempo em que se fazia um grande plano que deveria mudar tudo não está mais aí. Podemos atuar em partes e mudar nossas cidades a partir de projetos pontuais, irradiadores de transformação. Claro que, sempre amparados em leituras e visões globais, abrangentes.
BCB: O arquiteto finlandês Juhani Pallasma (3) critica que a arquitetura contemporânea está cada vez mais “retiniana”, pois, segundo ele, um mesmo grupo de arquitetos constrói os mesmos edifícios em vários lugares diferentes do mundo, o que reforça a idéia do arquiteto como um criador de imagens, colocando a composição formal como o fator mais fundamental no projeto, e dispensando qualquer referência externa. Já alguns arquitetos, como Tadao Ando (4), defendem que a criação arquitetônica não é um método para soluções de questões técnicas, ela deve ser acompanhada de uma ação crítica, e pede a contemplação das origens e da essência dos requisitos funcionais de um projeto, conjuntamente à identificação dos problemas essenciais. Como vocês entendem essas duas perspectivas tão distintas, uma que se concentra na própria lógica voltando-se para dentro, correndo o risco do isolamento perpétuo; e outra que se esforça no desenvolvimento de relações externas, mas corre o risco de perder a coerência.
MF: Eu acho que o Ando tem razão e é coerente em sua obra; quando se olha para o Japão com sua forte cultura e para o Tadao Ando, você diz: só podia ser ele. Tudo em sua obra passa a ter sentido e eu concordo muito mais com a arquitetura dele do que com a dessa turma da “fórmula 1”, mesmo com seu forte apelo formal – o Japão tem um lado formal forte, não é?.
Mas eu queria dizer algo um pouco diferente de um e de outro. Por exemplo, no museu do pão, restauramos um moinho antigo e projetamos um conjunto novo, (do qual se pode dizer “é arquitetura paulista, é a nossa origem FAU USP, é miesiano em planta, é assim e assado...”). Para nós isso não importa tanto, o mais importante é o efeito transformador que esse projeto provocou na comunidade - e esse é o caminho mais difícil. Isso não está expresso em sua forma, em sua cara, não está claro quando você visita. Então, recuperar e transformar o significado de um moinho velho abandonado, lembrança de um passado pobre, sofrido, de tempos duros dos imigrantes pioneiros, é muito importante e pode ser legal. Fazer esse conjunto – moinho, museu, escola de panificação – viver na atualidade é o efeito objetivo de um projeto de arquitetura. É muito bom, é uma satisfação enorme poder atuar nesse sentido. Hoje, a comunidade local que já via no moinho um motivo de vergonha, orgulha-se dele. Essa foi a conseqüência de um projeto arquitetônico (e de um programa, que para nós é uma coisa só): fazer mudar o comportamento, mudar a visão das pessoas, mudar uma comunidade. Então, eu acho que não estamos nem com o Pallasmaa e nem com o Ando exatamente, é outra coisa. Atuamos politicamente e nossa ferramenta é a arquitetura. Em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, foi a mesma coisa, ter trabalhado com os índios e criar um lugar confortável, um espaço novo, que tem forma, tem a nossa planta racional do Mies, tem Artigas e tudo o mais, mas tem também um elo forte com a comunidade no aproveitamento da técnica local e, mais ainda, na maneira de utilizar e compartilhar os espaços. Projetar é criar uma historia com nexos, efeitos, e fazer viva essa história, como se fosse um filme.
Pense, por exemplo, no Sesc Pompéia: que cara tem? Não importa. Temos lembranças de situações vividas ali, festas, tardes bonitas, encontros com amigos... um projeto que causa efeitos, ações, que faz diferença na fantástica vida da cidade.
notas
3
PALLASMAA, Juhani. Toward an Architecture of Humility: On the Value of Experience. In SAUNDERS, William S. Judging Architectural Value. Harvard, Harvard Design, 2007.
4
ANDO, Tadao. Por novos horizontes na arquitetura. In NESBITT, Katte (org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica (1965-1995). São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 495.