Ivo Giroto: Sobre as multidões, na década de 1960 tinha um grande debate sobre o problema urbano, e populacional principalmente. No mundo todo aparecem algumas respostas da arquitetura, o que ficou conhecido como megaestruturalismo, metabolismo... O Sr. acompanhava essa discussão?
Fábio Penteado: Nesse momento havia uma preocupação sobre o futuro da humanidade, era o que mais se discutia. Hoje até já passou, mas se dizia que até o final do século o mundo ia ter cinco bilhões de pessoas! E a discussão que eu abordei no meu trabalho, e até virei um chato: como alojar as multidões que vão chegando, particularmente, no nosso mundo? Porque no mundo europeu, nunca uma cidade qualquer, como aqui, como Campinas, como São Paulo, cresce tanto. Campinas que tinha 150 mil pessoas quando eu me formei, hoje tem um milhão e meio. Como alojar pessoas? Qual é o modelo? Então era uma utopia completa, espaço de multidão, que não cabe em lugar nenhum, pois você tem um limite para colocar.
Mas então ficou assim, uma espécie de pedra de toque. É interessante que, por exemplo, na época surgiam megaprojetos de cidades enormes. No Japão tinha o Kenzo Tange, eram sempre coisas muito grandes. E, de repente, mudou. Aqui no caso nosso veio uma reversão de processo, com isso você vê só detalhe. A preservação da natureza, a paisagem, então não se discute mais aqueles grandes projetos. [...]
Quer dizer, a gente tem que discutir processos construtivos que impliquem numa transformação na maneira de também pensar a arquitetura. Você acha que se pode continuar fazendo um projeto de multidão em que cada metro quadrado vai pesar uma tonelada? Tirar a terra do chão, moer, transportar, gastar energia.
Então vão ter que surgir propostas, que ainda nós não temos acesso, mas países mais desenvolvidos, europeus, Estados Unidos, fazem muitos estudos para montar grandes empresas de construção de habitação, de arquitetura, e que vai fatalmente acontecer. E que até pode ser que sejam coisas bonitas, leves, que não entre calor, não entre barulho. Eu acho que vai ser num futuro próximo.
Tem que ver também a questão do mercado, na hora em que tiver a necessidade de encarar o problema, o mercado vai exigir soluções industrializadas, leves, bonitas, que vão atender a multidão com o interesse de desenvolvimento. Se bem que agora muda tudo, de uma linha empresarial capitalista norte americana a uma próxima que é chinesa, que ninguém sabe como vai ser. Vai de avalanche mudando tudo!
IG: Mas a questão da multidão não pode ser somente ligada ao mercado...
FP: Não. Mas é que o mercado, o processo que gera o movimento do mercado, busca suas melhores acomodações. Se for bom para essas megaempresas mundiais investirem nas cidades, nos espaços, elas vão fazer. Tomara que esteja incluído nesse processo evolutivo essa preocupação de acomodação, de espaço, de beleza e de paisagem.
FP: E como pensar a questão da superpopulação numa cidade como São Paulo, que recebeu gente do Brasil inteiro, do mundo inteiro?
IG: Não é só o fato de receber gente, é que o que aconteceu em São Paulo, se é que houve uma cidade que tinha unidade urbana até chegar a 1 milhão de habitantes, isso se dissolveu, não volta mais. O que era dentro das linhas tradicionais, o centro, o bonde etc. acabou. Não tem mais. Perdeu. Se descaracterizou como cidade.
Então eu vejo que vai ter, por exemplo, áreas que vão representar centros de uma parte da cidade, que vão ter museus, teatros, etc., mas dificilmente vão se ligar. Imaginar que vão retomar o centro da cidade, eu acho uma utopia completa...
IG: O Sr. Foi testemunha ocular dessa explosão urbana que aconteceu em São Paulo. Como isso era sentido?
FP: Quando isso começou a crescer, acho que ninguém tinha noção... Até tinha a propaganda nos bondes: “São Paulo não pode parar”! O que é curioso é a total ausência de preocupação sobre esse problema por parte daquilo que se chama governo. Talvez alguns arquitetos, na FAU antiga, levantavam o problema, mas sem audiência. Quando entrou pra valer o processo da industrialização maciça, particularmente com a vinda da indústria do automóvel, acho que aí se abandonou em todos os sentidos. Rapidamente se criou uma dependência maior ainda, tendo que importar gasolina, pneu, óleo, acabar com as ferrovias.
E agora, como é que vai recuperar, se é que isso é possível? Tem que ter um projeto novo, que exige um volume de recursos que eu acredito que seja quase impraticável. Teria que dosar isso numa política de prioridades, um pouquinho para isso, um pouquinho para aquilo, e você vai vencendo. Por exemplo, aeroporto é um fenômeno fantástico em São Paulo. Um aeroporto maluco que é Congonhas, e não tem como um fazer outro. Onde agora? Não tem comunicação. O metrô, que é um grande avanço, em quarenta ou cinquenta anos só conseguiram fazer um pedacinho, por falta de recursos. A realidade é essa, somos pobres e a massa do dinheiro disponível faz gerar objetivos que não são os mais condizentes.
IG: Você entende essa multidão urbana como uma massa, em geral, oprimida?
FP: Acho que você chega lá também, não é? Mas não se trata de libertar a multidão oprimida. Eu acho que o espaço pode acomodar multidões na sua obrigação de viver, de caminhar, andar na rua, andar no metrô. O que de certa forma deve fazer parte dessa preocupação de arquitetura, e de tudo, não é?
Eu acho que com a tecnologia vai se poder, por exemplo, um estádio de futebol, no futuro, ele vai poder atender todo tipo de espetáculo, óperas, como eu vi muitas vezes. Então você pode botar mil pessoas num estádio de futebol, cada um tem uma caixinha que grava seu falar, seu cantar, e ser levado para uma central e distribuída pelo tempo e pelo espaço para todo mundo ouvir como se estivessem ouvindo dez pessoas numa sala. Isso vai ajudar a criar espaços culturais fantásticos, com a participação de quarenta, cinquenta, oitenta mil pessoas. E ouvindo como se estivesse ouvindo numa sala pequena. Eu acho que a preocupação que a gente sempre teve foi de acomodação.
Você falou de oprimido. É muito curioso, pois no mundo europeu, tem uma condição diferente. Eu me lembro quando eu fui da direção da UIA, eu me meti a besta e fiz lá uma série de propostas de terceiro mundo, e um amigo me perguntou: escuta tem família que vai levar uma criança ao hospital e é mordida por jacaré? Eu falei, não... (risos)
IG: Essa é a diferença entre pensar a multidão aqui e nos países desenvolvidos?
FP: É, e na própria história. Não tinha multidão na história. No tempo antigo não tinha, a população do mundo todo era pequena e compartimentada. O europeu, que sempre foi muito metido a ser dono da história – e já tinha uma história acontecendo na China, na Índia, fantástica, no México –, quando chegou foi pra destruir tudo, com navio, com canhão, para ficar dono. Uma forma selvagem. E continua!
Se você tivesse num país europeu acontecimentos como esses aqui no Brasil, ou no México, se crescesse 7% ou 8% a cada período, você manter a memória das épocas passadas, das pequenas cidades europeias, acabava tudo. Isso é inevitável.
Eu acho que essa linha de condução de pensamento aparece colocada em vários projetos diferentes, como num hospital (Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, 1968) que era um hospital de multidão, para atender gente muito pobre, ou num Teatro de Ópera também (Teatro de Ópera de Campinas, 1966), ou um Fórum (Fórum de Araras, 1960). Vários projetos que tem amarração e criando também formas, em geral que eu acho que são atraentes, e que se acomodam muito em grande parte ao conhecimento que cada um de nós vai tendo convivendo com as formas dos que estão perto fazendo. [...]
Então você faz uma forma qualquer que seja, um teatro até simpático, mas ele tem um compromisso, no caso nosso, de abrir espaço. Então é isso que você perguntou: qual é o papel? Eu entendo que, no passado histórico os arquitetos - claro que eu exagero, como jornalista que dá umas cutucadas -, trabalhavam quase que só para pequenos reis e pequenos deuses, palácios e catedrais. Agora, tudo bem, mas não tinha povo, não tinha nada a ver com gente, só usavam aqueles espaços o rei e seus amigos e o povo era muito pequeno para a população de uma cidade europeia. Começou a ter participação de gente, avanços da participação do coletivo nas coisas, mas esse espírito antigo continuou. Eu ainda acho que a arquitetura que se faz hoje, ainda usa de certa forma como modelo o Parthenon, que é uma obra muito bonita, mas que bem ou mal era uma intenção simbólica de representar um pequeno Deus.
IG: São exemplos da tua maneira de pensar os espaços para a multidão.
FP: Se discutia muito, mas eu nunca tinha visto se discutir o espaço. E evidente que é diferente uma visão europeia do que uma visão, digamos na época, do terceiro mundo. Era bem marcado nesse aspecto o terceiro mundo.
Realmente, a discussão sobre este assunto estava na mídia. Porém poucos arquitetos transformaram isso no centro, no eixo estrutural de projeto. Todo mundo sabia disso, mas cada um lê a realidade de um jeito diferente.
É a eterna discussão, o arquiteto, com o foco de ser o idealizador e fazedor, mas não cabe ao arquiteto dirigir a história da vida, não cabe.
Na verdade, muito da arquitetura dessa época, especialmente aqui em São Paulo, era bem voltado à questão das massas, através da industrialização, da dimensão pedagógica, etc...
Se acompanhava sempre a evolução natural. Um país que vinha crescendo e os problemas da cidade, geração de emprego, de habitação, saúde, água, esgoto... Tudo isso obriga, não só a arquitetura, mas a cada setor da sociedade estar ligado, de uma forma a outra, a um compromisso comum. O encaminhamento dessas soluções é de ordem política, não é? O arquiteto acompanha.
IG: Agora, viver no meio dessa multidão, em uma metrópole, na maioria das vezes não é uma questão de escolha. Pode ser uma experiência boa ou você sempre procurou minimizar os efeitos negativos de viver no meio dessa multidão?
FP: Veja, admitindo um problema semelhante numa cidade da Europa: se uma cidade bem organizada tivesse um crescimento rápido, ela se desorganizaria inteiramente. Faltaria escola, faltaria água, faltaria luz, faltaria tudo.
Eu me lembro que uma vez eu estava em Praga, e naquele ano não se havia feito nenhuma escola na Tchecoslováquia, pois não havia crescimento da população, enquanto no Brasil se fazia de uma pancada 400 escolas em São Paulo e não era suficiente. Então tem essa disparidade.
Quando você tem uma multidão em busca de caminho, - ou sem caminho, como é caso brasileiro - é muito difícil. É muito difícil trabalhar, é muito difícil ir e voltar. Veja, em São Paulo, as condições de trânsito, de tráfego, são quase caóticas. E todo mundo passa por ela, bem ou mal, não é?
Eu acredito que por ser dramática, essa experiência cria um sentimento de necessidade de melhorar, em todos os níveis, até atingir uma preocupação real de se conseguir melhorar através de benefícios legais e de recursos, que é o grande problema.
Se trouxer um cidadão europeu muito organizado para dentro de São Paulo, ele enlouquece em poucas horas.
IG: Vem daí teu interesse pela grande escala?
FP: Não sei, da minha ligação com a arte, com o desenho... Um objeto grande, claro, tem que estar dentro de uma paisagem igualmente grande. A paisagem sempre é grande. No momento que você ordena ela, ela fica dividida em pedacinhos.
Eu acho o seguinte, não vou falar com pretensão, mas entrar numa escala do grande é muito difícil. Por exemplo, na nossa arquitetura, arquitetos notáveis no objeto pequeno não conseguem entrar no objeto grande. É muito difícil. O que no meu caso é o contrário, um projeto pequeno para mim é quase insolúvel.
IG: Há no seu trabalho uma característica de resolver os projetos em torno do conceito de praça que é muito recorrente.
FP: É, porque seria um ponto de encontro, de facilidade. Eu acho que tudo se amarra nessa utopia de multidão, que era realmente o que marcava a expectativa da década de 50. Havia a firme caracterização, não só da arquitetura, eu acho até que a arquitetura não se envolvia muito nisso, não. Mas era tudo, comida, espaço, etc. Era o susto de que aqui na Terra ia ter cinco bilhões (de habitantes), mas já passou de sete, não é? Você vê que ainda hoje ninguém sabe bem o que vai acontecer. Então aquele medo daquela época, acho que já passou por outras coisas, passou para doenças, para epidemias...
IG: Nos seus projetos você sempre recorre a referências populares, o mercado de rua, o circo, a própria praça pública.
FP: Talvez por um sentimento, que é normal, que é de você viver, conviver com aspectos da miséria, da pobreza, da desatenção. Claro, mais tarde você entra nisso da questão da transformação social. Tudo que aconteceu, na evolução dos espaços também, foi ganho duramente, uma política de ganhar: o horário de trabalho no Brasil, o atendimento social da época do Getúlio, foram avanços dificílimos. Matavam gente que discutia isso! Então claro que marca uma pessoa que tenha qualquer tipo de sensibilidade e, claro, quando se convive com os homens que eu encontrei na arquitetura e no jornalismo, em tudo esse tema existia.
Às vezes entra um pouco de exagero, tudo sobre o olho marxista, aí começou a ficar chato. Por exemplo: o grego fez porque tinha escravos, como se só o fato de ter escravos justificava. Mas acho que isso faz parte do contexto, hoje em qualquer conversa de estudante de arquitetura esse tempo está envolvido. Se ele se transforma em uma linha de projeto, é diferente...
IG: É que nos desenhos dos seus projetos há sempre muita gente junta, mas que parece estar convivendo em um nível de cortesia, parece que elas se conhecem...
FP: Se você pegar uma comunidade de mil pessoas juntas em uma cidade, você tem quase que uma convivência obrigatória. Agora se você vai para um lugar de 10 milhões, 20 milhões, como é a região de São Paulo é muito difícil imaginar como resolver. De qualquer maneira, essa preocupação, eu acho que ela tem um sentimento humanista, mas que tem que se integrar em uma visão política de ser possível fazer. Por isso que às vezes há uma tendência de melhoria social cada vez mais pressionada pelos usuários dessas necessidades.
Se você olha a paisagem de São Paulo, não tem nada disso, o que você tem é uma paisagem imobiliária. Como seria também, acredito, Barcelona muito parecida se ela chegasse a ter dez milhões de habitantes de repente, quinze milhões, vinte milhões...
IG: E diferente de São Paulo, talvez por isso mesmo, a cidade não perdeu seus pontos referenciais.
FP: É que lá não houve um desenvolvimento coerente com a realidade internacional, que hoje em dia está acontecendo com força na grande evolução da economia do Oriente, do Japão, da Coréia, da Índia, da China. E isso vai sufocando os países europeus, muito calmos, muito organizados, que podem sofrer no futuro consequências que ninguém pode imaginar. Muito bom, muito bom, mas se crescer esse bom desaparece.
E até cidades que cresceram muito na Europa, como Londres, o crescimento aconteceu de uma maneira diferente, a cidade não perdeu os referenciais urbanos. Até agora...
Você não pode esquecer que a Inglaterra teve um papel na história do mundo conhecido muito grande, um império. A Inglaterra para manter essa condição de desenvolvimento usurpou os direitos de grande parte da humanidade, ocupou a China, a Índia e obteve recursos para garantir uma política de manter isso que você falou, o que é muito importante. Ao mesmo tempo a Inglaterra foi o berço da indústria.
Mas é que já havia uma preocupação cultural, política, tanto é que não é à toa que toda a evidência do conhecimento mundial mais importante começou lá: o Karl Marx, em seu trabalho de gerar o poder da multidão que se transformava a partir do trabalhador surdo dentro de uma indústria, foi feito na Inglaterra. Mas foi possível porque lá já tinha recursos extraordinários graças ao seu domínio de outras terras, o que hoje já não é mais possível. Daqui para frente como vai ser?