Felipe Pires: Interessante. Até era uma pergunta que a gente tinha colocado aqui, eu acho que você responde bem, quando você trata dos croquis, que é como os estudos do Parque do Bexiga incorporam os projetos anteriores.
Newton Massafumi: Sem dúvida.
FP: Mas eu percebo que, além dessa incorporação, também tem uma série de mudanças de paradigma, até nessa questão do córrego. A gente tinha muitos projetos anteriores que não pensavam no córrego. Então eu gostaria de saber, além dessas relações de continuidade que você deixou bem explícitas, quais foram as mudanças de paradigma pra pensar esse espaço também.
NM: Na verdade, a gente vem estudando essa questão do córrego antes do projeto do Parque do Bexiga. Nós estudamos o córrego que faz parte da Bacia do Anhangabaú, que é o córrego Saracura-Assu, propondo a ressignificação dele, a preservação das nascentes… Então, nesse caso do Parque do Bexiga, nós não só requalificamos esse trecho do rio, aflorando ele, mas também inserimos nesse terreno mais algumas atividades. Como por exemplo habitação de interesse social. Então, nós inserimos um edifício de habitação de interesse social que teria uma tipologia de locação. Incluímos, também, espaços que, abrigados por tendas, seriam espaços de atividades e manifestações culturais. Incluímos, também, uma rua interna de pequenas oficinas de prestação de serviço, que acontece muito no Bexiga. As pequenas oficinas de serralheiros, de marceneiros, acontecem demais lá. Então, aquele lugar poderia abrigar não só essa requalificação do córrego e da vegetação, a recuperação da fauna e da flora, que a gente tamponou, para que as crianças e a vida das pessoas convivam mais proximamente disso, como também as atividades que fazem daquele lugar um lugar peculiar no centro da cidade. De pequenas oficinas, de gente que mora lá de uma forma resistente — e que qualquer modificação urbanística grave poderá gentrificar essa população originária de lá. Então, tudo isso faz parte de um conjunto de propostas que compõem esse novo parque do Bexiga.
FP: Maravilha.
Vera Santana Luz: Felipe, posso falar uma coisinha rápida? Olha, eu acho bonito esse seu esclarecimento. Queria sublinhar, porque na verdade você foi descrevendo um respeito absoluto ao que já tinha sido proposto e a própria natureza do teatro. Isso é o caldo, a gente tá na cultura. Quer dizer, a arquitetura não é algo autoral, tipo nasci e fiz. Ela tá na cultura. Então, esse respeito é lindo. E, ao mesmo tempo, eu queria salientar isso pro Felipe, a forma final que tem esse estudo, ela não tem uma forma e ponto. Ela é a forma do programa. Então, quando você junta condições naturais que foram submergidas pelo programa, condições antropológicas que têm a cara do Bexiga, misturado àquilo vai criando quase como se fosse assim… Não é algo tão mecânico, mas aquilo vai se apresentando como possibilidades formais, mas é o programa que está regendo, nesse caso, e é um programa urbano. É o tal do coletivo que você falou. Não é um programa que saiu da minha cabeça. É um programa que eu leio no território, respeitosamente, e aquilo tudo pode manter o tal do pacto que você falou. O que você tá falando, do ato projetar, tem tudo a ver com a teoria que você montou antes. Não é uma coisa assim, falei uma coisa e fiz outra. É super bonito.
NM: Legal, Vera. É isso mesmo. Então é isso, Felipe.
FP: Aproveitar uma pergunta que eu tinha colocado aqui. Esse procedimento de ressignificar o córrego é muito interessante. A gente sabe que São Paulo tem muitos outros rios, que são soterrados pela cidade. Eu gostaria de saber se você acredita que esse projeto do Parque do Bexiga, com esse procedimento de aflorar o córrego, poderia ser replicado. Replicado não é a palavra, mas poderia ser feito em outros lugares da cidade e dar um outro parâmetro para como a cidade interage com seus corpos hídricos.
NM: Sem dúvida. Essa proposta, que é tão localizada e específica, ela pode ser universalizável. Deverá ser universalizável, se possível. Deverá induzir novos olhares pros cursos d’água da cidade. O tempo todo houve uma rejeição dessa convivência, e eu acredito muito que está chegando a hora dessa condição de convivência mais real com a natureza. As crianças convivendo com esses animais silvestres que acontecem na beira d’água. As borboletas, os insetos, as flores, as folhas. E o curso d’água, que ora enche, ora esvazia, essa dinâmica. É uma dinâmica que a gente não tem oferecido para o cidadão urbano, porque lá pelas tantas a gente achou que era melhor tamponar. E tem até uma legislação aqui em São Paulo, por incrível que pareça, que transforma os córregos em galerias de água pluvial. Porque existe uma legislação federal que diz que até cinco metros de largura do córrego, você tem que deixar trinta metros, quinze de cada lado do eixo do córrego. E você tem uma nascente, que tem que ser preservada em um raio de cinquenta metros. Isso é uma legislação federal, pra todo território nacional. Contudo, na cidade de São Paulo, por você tamponar os córregos, você pode construir a dois metros dele, as vezes até em cima. A Câmara Municipal de São Paulo está construída em cima do córrego Bexiga. Mas a jusante. Então, é impressionante. Eu te enviei um powerpoint que nós apresentamos no Sesc, onde aparece uma expedição que fizemos com aquele movimento “Rios e ruas”, onde nós fomos detectar as nascentes do córrego do Bexiga. E ela tá viva lá, tá pulsando. Os moradores sabem por onde corre. Eles disseram: “Se você abrir esse bueiro vocês vão ver o córrego passando embaixo”. Dito e feito! Abrimos um bueiro, ele passa lá, fazendo barulho de água, em um dia que não está chovendo. Então, os rios e córregos, que estão tampados, estão vivos. Basta a gente fazer uma manifestação mais coletiva, para recuperar eles.
FP: Entendo. Eu gostaria de perguntar, além desse impacto ambiental que esse córrego poderia ter para a cidade, e ter esse impacto na vida dos cidadãos de ter uma convivência mais harmoniosa com a natureza, que é um direito nosso, também gostaria de saber como você vê os impactos sociais que o projeto poderia ter, quais seriam os impactos dele no Bexiga e pra cidade.
NM: Sem dúvida. Porque, no fundo, essa convivência cria motivos muito interessantes para você gostar da cidade. Então, eu digo aqui pra nós, que ele tem embutida uma estratégia de pertencimento. É uma estratégia onde você pode, próximo a esses cursos d’água, a gente pode ter uma infraestrutura próxima da natureza, onde essa infraestrutura pode vir a ser lagoas intermitentes, de chuva, ou hortas comunitárias. Quando você participa da feitura de uma horta, da manutenção dela e colhe os frutos e leva pra casa, você começa a ter um grau de pertencimento daquele local muito forte. Então, a micro bacia de cada um desses córregos poderá vir a ser também uma certa unidade de gestão. Seria muito bonito se a gente tivesse, no nosso endereço convencional: “Moro na rua Jaceguai, número 30, na microbacia do córrego do Bexiga”. Assim que a gente desejaria.
FP: Entendo. Uma das perguntas que eu tinha colocado, é como o projeto se articula com o histórico do bairro do Bexiga. E eu gostaria de me aprofundar nisso e acrescentar, muito baseado nas pesquisas que eu fiz sobre a vivência do Bexiga, as coisas que eu li, que não foram tantas comparadas ao material que tem sobre isso, que é muito extenso, mas se fala muito de uma vivência coletiva do Bexiga, histórica, questões das oficinas nas ruas, um bairro em que as pessoas se conhecem. Então, você acredita, também, que essa forma de reforçar o pertencimento das pessoas esteja vinculada a uma questão histórica do território? Gostaria também de ter um pouco esse parâmetro histórico.
NM: Sem dúvida. No bairro existem uma série de pequenas entidades que, no fundo, sintetizam as manifestações culturais de lá. Então, existe milhares de entidades: uma que promove uma procissão, uma que promove uma festa, outra promove música, outra promove atividades artísticas. Então, inúmeros grupos se reúnem e as manifestações, indubitavelmente, são no espaço público, na rua, nas praças, não é? Então, esse lugar que é um espaço público, teatro e praça a céu aberto, poderá vir a ser de gestão compartilhada, sem dúvida. É uma governança que é desejável para a cidade. Então, esse pertencimento pressupõe uma colaboração em tudo que esse projeto poderá proporcionar, inclusive na sua gestão. Essa gestão, ela vai inclusive promover programas de uso da própria praça. Uma hora é um festival de teatro, outra hora é uma apresentação da Vai-Vai, que aquela passarela tá dimensionada para que ela possa passar. A Vai-Vai vai fazer um ensaio lá. Então, é isso que a gente vem imaginando. Então, a arquitetura e o espaço, e nós que somos colaboradores desse processo… a gente especializa aquilo que já tá lá, na cara. Desenterrar um córrego, fazer passarelas como continuação do Teatro Oficina, regenerar esse lugar, fazer com que as pessoas fiquem lá, fora do momento de evento, fiquem sentadas lá naquelas arquibancadas, que na verdade são um banco corrido para você ficar vendo o rio correr lá embaixo. Depois de amanhã, se tiver uma cena lá proporcionada por um festival de teatro, ótimo. Então, tudo isso é vida que vai ser vivida. Provavelmente vai ter programas e atividades que não são previstos, né? E também terá abrigo pra isso. E esse projeto não é mais nosso, a essa altura. Não tem autoria.