Felipe Pires: Aproveitando, também. Até queria falar que a questão do questionário, a gente sempre fala que ele é semiestruturado, porque ele é mais pra dar um norte. Então, a gente não tá seguindo à risca, mas, porque tem várias questões que foram sendo respondidas antes mesmo da pergunta, e eu acho isso muito legal. Mas, pensando agora, eu gostaria de saber qual a sua perspectiva de como o Parque do Bexiga vai ser feito agora, tanto na Câmara Municipal, como na Prefeitura, a gente sabe que já teve um certo impasse da Prefeitura. Eu gostaria de saber como você avalia essa questão.
Newton Massafumi: Então, vale ressaltar que houve, por parte do vereador Natalini, um projeto de lei pra criação do Parque Bexiga. Antes desse estudo que nós fizemos. E esse projeto de lei, ele se identifica muito com a gente e ele se identifica muito com esse estudo que nós fizemos. Em 2019, até por conta dessa proposição que foi feita, e que animou muito os moradores, o Teatro Oficina se juntou a essa iniciativa para colocar em votação o Parque do Bexiga e houve, por parte dos vereadores, uma sensibilidade muito grande no sentido de adotar essa iniciativa como algo necessário para a cidade. E houve uma aprovação plena na Câmara Municipal de São Paulo, em 2019. Essa aprovação foi muito comemorada por todos nós, que estávamos lá na plateia da Câmara, torcendo. E isso seguiu para a sanção do prefeito. Na ocasião, o prefeito Bruno Covas tinha requerido uma licença por motivo de saúde e o substituto dele, que foi o Andrea Matarazzo, vetou esse projeto. Então, nós estamos nesse impasse, desde 2019, onde nós temos a aprovação do plenário da Câmara, completo, muito ovacionado por todos nós, contudo vetado pela prefeitura Municipal de São Paulo. Então, é uma situação muito complicada, esse é o cenário que nós vivemos. Então, é uma situação muito difícil de imaginar, como os vereadores todos aprovaram. A comunidade liderada pelo Teatro Oficina fez um abaixo-assinado com mais de 150 entidades e não sei quantas mil pessoas e que chega até a prefeitura, dizendo que tá todo mundo interessado, considerando necessária a criação de uma área verde lá, e a prefeitura veta isso. É uma coisa muito maluca. E nesse entendimento, existe também uma saída pro próprio proprietário. Porque o direito de construir lá, que é um direito adquirido, que o proprietário adquiriu um direito de construir mais do que a condição básica, que é o índice de aproveitamento vezes uma vez a área do terreno. Ele conseguiu mais vezes. Essas mais vezes conseguidas lá, conseguiriam ser transferidas para outro terreno. Isso foi aberto para ele, como alternativa. Então, tecnicamente, em termos de valor, tudo é possível de ser feito. Tudo foi equacionado, o que viabilizaria, de certa maneira, por parte do proprietário, essa possibilidade. Contudo, parece que têm forças do próprio proprietário, induzindo a direção da prefeitura, no sentido de vetar isso. Esse veto não vem de graça.
Vera Santana Luz: Olha, Massafumi, eu estou achando essa entrevista fundamental para o trabalho, porque nós estamos tocando em 200 mil aspectos, que são os que competem a qualquer projeto urbano atravessar. É uma travessia imensa e lenta. Eu tenho uma identidade que eu vou manifestar aqui, com seu trabalho, essa relação das Soluções baseadas na Natureza, eu estou muito mergulhada nisso. Agora eu estou 100% no trabalho acadêmico, mas estou totalmente mergulhada nesse universo. E eu ‘tava lembrando, tem uma ativista na Califórnia, chamada Ann Rilley, que trabalha com as restaurações dos corpos hídricos. Ela tem dois livros em que ela vai contando toda essa experiência, acabou virando uma coisa enorme, de muitas ONGs, mas é sempre baseada em uma relação comunitária próxima, uma escola, uma biblioteca, o que seja. Em geral, são comunidades carentes, do ponto de vista urbanístico e financeiro. Então, a gente fica aqui com essa ideia de Brasil, mas Estados Unidos, Califórnia, país rico, e como os rios nos Estados Unidos são geridos pelo exército, porque o exército, nos Estados Unidos, que tem a prerrogativa de mexer nos rios, inclusive pra obras civis, os processos são lentíssimos. E a coisa que mais me impressionou, além da metodologia, que é muito parecida com tudo o que você falou, e todos os entraves, o ritmo que eles conseguem, é muito análogo. São vinte anos pra conseguir um projeto, dez anos, cinco anos, de restaurar três quadras, então faz parte da condição de lidar. É o que o Felipe falou, uma mudança de paradigma, de entender que a natureza pode fazer parte do tecido urbano, do jeito que a gente está imaginando, e você fala de uma maneira linda, porque além da questão técnica, você poetiza isso e a gente fica super comovida, é uma mudança de paradigma mesmo, e isso leva tempo. Porque as forças do status quo são uma inércia muito grande. Deu azar? Não deu azar, é assim que funciona. Se quiser mudar tem que ter paciência e força, porque o negócio não é brincadeira. É uma mudança profunda tirar um riozinho do seu esconderijo.
NM: E é uma alegria muito grande. No dia em que aprovou a gente saiu lá no Bexiga e ficou bebendo até mais tarde, fazendo samba. É um dia de muita alegria. Três dias depois, é um dia de muita tristeza, que você chora. Então, é uma coisa impressionante.
FP: Bom, pegando o gancho com o que a Vera falou, também entendo esses impasses, esses obstáculos na mudança de paradigma, mas também acho que é muito feliz ver o Oficina e outras entidades do Bexiga lutando pelo parque. Porque uma coisa que eu sempre penso sobre o Oficina é que é um teatro, em um lote minúsculo, em um embate com uma empresa multimilionária e que conseguiu barrar o projeto dessa empresa por quarenta anos. Então, a força que o Oficina tem não é brincadeira, eu acho que inclusive um dos motivos da pesquisa é tentar entender de onde vem essa força. E eu acho muito bonito, também, quando eu vejo você falando essas questões do coletivo é que essa luta está se vinculando a outras lutas da cidade e como ela tá se instrumentalizando, não propondo só questões da cultura e do lazer, como também se vinculando a questões do meio ambiente. Então, eu vejo que essa luta só cresce e que, apesar desses embates com a administração pública e com o setor privado, acho que é uma luta que tem muita força. Gostaria de fazer esse elogio.
NM: Muito bom, muito bom. E isso que a Vera disse, realmente, nós como universidade, essa procura, essa pesquisa, essa investigação dos novos paradigmas, onde é que eles estão ocorrendo, ou como as pessoas estão conduzindo isso, deverá fazer cada vez mais parte do nosso cotidiano. E nós temos que fazer essa ligação muito rápida, daquilo que nós fazemos e pensamos com aquilo que está efetivamente acontecendo na cidade. Então, aquilo que faz parte da nossa pesquisa, do nosso interesse, tem que ir logo pra rua, tem que logo fazer parte daquilo que está acontecendo na cidade. Assim que eu penso as nossas pesquisas na universidade, o papel da universidade é muito importante nesse sentido. Então, o trabalho de extensão pode ganhar um papel muito contundente nesse momento, até mesmo se olharmos esse momento crítico em que estamos vivendo, onde fica exacerbada essa contradição socioambiental das cidades brasileiras. Nós não queremos fazer infraestrutura cinza mais. Nós queremos infraestrutura baseada na natureza. Como é essa infraestrutura? Quem faz? Como é que é feito? Então, isso é uma sintonia fina que nós temos que externar rapidamente. Eu concordo completamente com a Vera, que vai lá buscar o nome da pessoa, como que fez, quantos projetos teve. É uma experiência, nós temos que colocar isso em questão já. Então, esse assunto que você está trazendo, que você está pesquisando, no fundo ele contém todas as conotações. Então, é muito, muito atual. O projeto de lei do Natalini, terá que se falar dele, terá que ser citado. Então, acho que é muito importante isso.
FP: Com certeza, fundamental. Acho que aproveitando, que não queremos ocupar muito do seu tempo, a gente conseguiu muita coisa legal, vamos nos encaminhando para o final, também gostaria de saber, saindo um pouco da perspectiva do Bexiga e do Oficina, um pouco do seu trabalho, como arquiteto. Pra fazer a entrevista eu pesquisei, vi muitos projetos da Gesto Arquitetura. Muitos projetos que eu olhei e pensei: “Isso é uma baita referência”. Queria saber um pouco como você encara… Sua visão de projeto de arquitetura e urbanismo, tendo em vista essa perspectiva ambiental. Achei muito interessante e gostaria de saber mais disso.
NM: Tudo que a gente vem conversando aqui tem uma sintonia com o que a gente vem fazendo. Na verdade, nós procuramos essa questão há mais de quinze anos. E a revisão dos procedimentos projetuais da qual nós fomos originados, nas nossas escolas, foram colocados em questionamento na verdade, nesses estudos que fizemos. Então, a relação com a natureza não é mais uma relação de conflito e domínio, mas sim, de convivência. Essa é uma diferença considerável. E, nesse sentido, uma série de iniciativas, que não são desse século, até do século passado, já procuravam fazer isso. Então, nesse sentido, também, a nossa arquitetura foi mudando. Nosso ponto de vista foi mudando. E a gente percebe que esse entendimento foi muito difícil no começo e que hoje, quem sabe esteja mais amadurecido, para que a gente possa conversar sobre isso. Porque a convivência com a natureza ganha uma qualidade diferenciada. Parece que cuidar da natureza é uma coisa muito importante, não conflitar com ela, né? Não dominá-la, mas fazer uma convivência pacífica. Então, esse domínio que foi pretendido há centena de anos atrás, tá parecendo que precisa ser revisto. E disso decorrem todos os procedimentos, os projetos, tudo mais. Acho que é por aí, a chave.
FP: Maravilha.
VSL: Olha, é muito bonito ouvir você falar isso, Newton, porque eu acredito piamente nessa descoberta, que é o óbvio, que não é óbvio, por que a gente tá completamente na contracorrente de uma coisa. Tem uma energia positivista, que tem uma violência. Que é o encantamento pela tecnologia da revolução industrial. A gente ainda tá hipnotizado por isso. E isso tem um equívoco de origem que é esse domínio passado do ponto. Então, é como se os ventos da revolução industrial estivessem espantando nossos cabelos e a gente falasse “Peraí!”. Onde é que nós estamos indo parar? E a gente, como arquiteto, qualquer coisa que a gente faz são toneladas. Qualquer brincadeirinha que a gente faz, qualquer parede, são toneladas. Então, a gente tem uma responsabilidade absurda sobre a matéria e sobre a natureza. Então, a gente não é um pintor que polui um pouco a camada de ozônio porque a tinta e?… O negócio é sério. Quinze anos é muito tempo, mas é um começo pra pensar a coisa. E, ao mesmo tempo, a gente tem uma formação muito sólida. O movimento moderno não é brincadeira. Nossa formação universitária é uma formação técnica e de preceitos humanistas muito forte. Então, não é que é diferente. É a mesma coisa que vai virar o avesso dela. O avesso do movimento moderno vai mostrar isso que você está falando, mas não é uma negação. É um ajuste de contas, porque a gente passou do ponto com a nossa mãe. A gente maltratou nossa mãe. E tem uma coisa que eu queria lembrar. Tem um cara que eu estudei no ano passado, que é o Eduardo Gudynas, um ambientalista. Ele é maravilhoso e tem um livro que é uma graça, que ele conta da constituição do Equador, que é um país desse tamanho, que tem na sua constituição os direitos da natureza. Não é que a gente tem direito à natureza. É que a natureza tem direitos próprios e não tem voz. É um personagem sem voz. E a Constituição do Equador fala que os guardiões da natureza somos nós, porque ela tem direitos e não tem voz, e quem é o principal são as populações autóctones, que sabem lidar com isso. Então, a vontade é de gritar. O Equador está uma porcariada, só que a constituição está escrita, pelo menos. Então, isso pra mim foi uma descoberta… Aqui tem gente, lá no meio da floresta amazônica, percebendo a burrada que a gente tá se metendo. Então, é muito lindo ver você falar, porque é completamente… É de uma honestidade, de uma humildade essa revisão e ao mesmo tempo de uma potência, poética, técnica e de vida. Então, eu estou muito feliz com essa entrevista, por que ela conseguiu me surpreender além do que eu esperava, você conseguiu me comover e a gente vai, né? Conte com a gente como apoiadores.
NM: Muito bom! Vamos assim, somos amigos agora, tá bom?
FP: Beleza! Tenho total certeza disso, adorei o resultado. Já esperava muito e me surpreendeu muito positivamente. Então é isso! Muito obrigado!
NM: Tá bom, muito bem! Vera, quando precisar a gente conversa, não se acanhe pra me chamar, vamos participar dessa nossa continuação da nossa conversa, que é muito bom.
VSL: Namastê pra vocês. Parabéns, porque é uma luta maravilhosa. Felipe super bacana, porque é um menino esforçado, inteligente. Na minha idade, não chego aos pés dele quando eu era estudante. Eu sei que vocês estão super ocupados, então eu agradeço super vocês abrirem essa brecha. E que os gestos possam virar gestos para o mundo.
NM: Muito bom, muito bom, sem dúvida. É muito oportuna essa conversa e ela é muito viva. Então vamos continuar, sempre que for possível.
VSL: Quando a gente tiver um espaço lá na universidade, nós vamos convidar vocês para falar, tem um monte de disciplinas que eu acho que vocês podem contribuir. Eu acho que é um prazer, uma coisa maravilhosa. Seguimos juntos.
NM: Beijos.
VSL: Obrigado, Felipe. Quer fechar?
FP: Pode ser!
VL Então fecha.
FP: Bom só agradecer de novo, pela generosidade de compartilhar tanto os conhecimentos quanto o tempo, que a gente sabe que não é algo tão fácil. Quero parabenizar toda essa luta, toda essa trajetória, que é muito bonita. Espero que a gente consiga também manter contato e ver os frutos dessa luta pelo Parque do Bexiga, que é uma luta justa, é uma coisa que a cidade precisa, o Brasil precisa. Essa são minhas palavras para fechar.
NM: ‘Brigadíssimo!
FP: A gente que agradece.
NM: A gente que agradece também porque é estimulante conversar com vocês. Na verdade, tem coisas que só a gente entende. Nós, como urbanistas, arquitetos, parece que tem uma certa peculiaridade aí. E identidade. Então, isso que a gente não pode deixar de fazer. Por isso que essa conversas são muito interessantes. O dia a dia nosso é corrido, tem uma série de afazeres, mas esse é o pano de fundo que a gente gostaria e tem que alimentar. E vocês, nessa conversa, é um alimento muito bonito para tudo isso. Vamos continuar fazendo isso, por favor! Bom trabalho pra vocês, tudo de bom!